sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

E um feliz Ano Novo...

Há alguns anos, um amigo ortopedista comentou, apreensivo, que iria dar plantões no Natal e Ano Novo. "É a pior época" - ele disse. "Muitos acidentes violentos, muitas mortes, muitos traumas". Psiquiatras também se preocupam aos finais de ano. Invariavelmente, os consultórios lotam em Novembro e Dezembro; é preciso abrir horários extras e encaminhar pacientes. Aí, é de outro trauma que se fala. Dores adormecidas costumam ser atualizadas em Dezembro. Amores que se foram, pessoas queridas que não estão mais presentes, dinheiro curto em uma época que são estimuladas as compras desenfreadas, além da convivência, muitas vezes nada harmônica, com dramas familiares não elaborados. Aí em  Janeiro, após o "mágico" dia primeiro, contabiliza-se mortos e feridos e dá-se início a uma nova empreitada.



" (...)que por decreto de esperança,
 a partir de janeiro as coisas mudem
e seja tudo claridade, recompensa,
justiça entre os homens e as nações,
liberdade com cheiro e gosto de pão matinal,
direitos respeitados, começando
pelo direito augusto de viver (...)


É hora de citar Drummond e acreditar que um caderno novo, com folhas em branco, se abre. E aí lotam as academias e os consultórios dentários. Resoluções de ano novo sempre incluem parar de fumar, entrar em forma e ir ao dentista, entre outras tantas coisas. Que mantêm-se até a página dois.
 
Esperam-se e planejam-se mudanças radicais sempre que um ano começa. "Desta vez, será diferente", pensamos. Não costumamos nos perguntar: "por que foi tão repetitivo até então?" Por que, afinal, pago a academia e não vou? Por que reclamo do meu trabalho e continuo nele? Por que me mantenho em uma relação que me faz tão infeliz? O que, afinal, desejamos? Sabemos mesmo? Queremos renunciar a um modo de ser ou continuar agindo exatamente da mesma maneira?
 
O velho tio Freud já falara da força, por vezes, mortífera, da repetição. Entender e re-significar o enredo repetitivo do filme de nossas vidas ajudaria a escrever uma nova história. Isso só não basta, é claro, mas é um caminho.
 
Bem, uma vez que há o ritual do recomeço, que possamos encarar 2013 como uma oportunidade. Se não é possível fazer a tal "guinada", que estejamos mais em paz com nossos próprios desejos, muitas vezes tão misteriosos. Feliz ano novo. Que o façamos NOVO à nossa maneira.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

Feliz Natal!

Eu tinha entre cinco e seis anos quando descobri que Papai Noel não existia. Minha família e eu viajamos para outra cidade e, nas vésperas de Natal, meu pai pediu para que eu escolhesse um presente. Acabei pedindo uma boneca que era minha segunda opção, uma vez que a primeira (o "Bebezão") o Papai Noel iria trazer. Qual não foi minha surpresa quando, voltando para casa, eu constatei que não havia ganhado o Bebezão. Meu pai, que mentia muito mal, explicou-me que o Papai Noel tinha visto que eu já tinha ganhado uma boneca e achou que eu não precisasse. A mentira, é claro, não colou. Como o Papai Noel tinha adivinhado? Além de voar, velhinho, pelo mundo todo, ele ainda era vidente? A sensação com a descoberta foi única. Triste por perder o Papai Noel, feliz por estar mais próxima do mundo dos adultos. "Eu sou inteligente" - pensei. Triunfante, eu contei para minha irmã, que era menorzinha. Ela chorou. Eu explicava meu raciocínio. Ela gritou e chamou pelo meu pai que disse que eu era uma boba e não sabia de nada. Mais calma e feliz, minha irmazinha repetiu: "você não sabe de nada". Mais tarde, ela me deu razão, mas chorou de novo. Desde então, tem sido assim. Há sempre um conflito entre acreditar em coisas bonitas e alentadoras e confiar no meu raciocínio e nas evidências. 



Não sou uma pessoa de fé. No entanto, já frequentei a igreja católica com disciplina, participei de novenas,  fiz várias promessas, chegando a pagar penitências. Bem pequena eu frequentava a igreja sozinha, o que fazia com que meu pai me chamasse de "carolinha". Participei de grupo de jovens.Em determinada época usei a pulseira de Nossa Senhora desatadora de nós, que arrebentou enquanto eu atendia uma criança. Os tais "nós", contudo, continuaram. Como tenho família espírita, gosto muito de ouvir as primas e tia falar do Evangelho do Espiritismo. Amigas trazem relatos emocionados, que comovem. Ouço com carinho, gosto de ouvir. Admiro a pessoa de Chico Xavier. Além disso, adoro falar: "Fique com Deus, Deus te acompanhe". Para mim, é como um afago. E é sincero.

Quando surgiam notícias de cartomantes novas, geralmente em ruas íngremes, numas quebradas ("essa é boa, menina, acerta tudo, só tem horário para o ano que vem"), eu sempre ia. Pagava. Elas erravam tudo. Sempre. Algumas diziam que eu estava com a energia "carregada" e que voltasse outro dia, pois não conseguiam ver nada. Às vezes eu voltava. E pagava de novo. E elas erravam de novo. "Só com você ela erra, Letícia". Pois é, só comigo.

Mapa astral eu fiz três vezes. Viajei para fazer. Eram três horas de consulta e eu ainda ganhava as fitas cassete para ouvir depois. Eu sempre perdia as fitas. Nada fazia sentido nos tais mapas, mas eu tentava encontrá-lo em vão. O horóscopo eu leio todo mês. Otimistas, eles sempre me falam de viagens ao exterior (que eu adoro) no final do ano. Nunca viajei para o exterior em finais de ano. Provavelmente, nem eu, nem muitos outros taurinos. Eu adoro estórias bonitinhas embora eu não me convença muito com elas.

Percebo que o triunfo diante da descoberta da inexistência do Papai Noel tem se repetido ao longo da vida. Sempre há a ambivalência entre a satisfação de sentir-se muito esperta e o querer acreditar mais um pouquinho (em um pai que protege, nas conjunções astrais, no bom velhinho, em estórias bonitas). Fico contente que haverá crianças no meu Natal, pois assim poderei brincar um pouco de faz de conta. Aí tudo é possível. Feliz Natal.

E se vivêssemos todos juntos?

Dia desses li uma entrevista de Fernanda Montenegro  à Folha de São Paulo que muito me comoveu. Aos 83 anos, ela compartilhou a tristeza que é acompanhar a partida dos amigos e colegas que foram testemunhas de sua juventude (além do marido Fernando Torres, Raul Cortez, Ítalo Rossi e Sérgio Britto). Perder, aos poucos, representantes de sua geração seria entrar em contato com a própria finitude. A geração de Fernanda Montenegro e, especialmente, a subsequente (a que está na faixa dos 70, hoje) são gerações emblemáticas e marcadas no imaginário popular como "jovens". São aqueles que tinham vinte e poucos nos anos 50 e 60, as décadas mais joviais do século XX. Caetano, Gil, Chico, Jô Soares, Marieta Severo entre outros tantos compõem o time de célebres desta época. Foi com este espírito nostálgico que fui assistir ao filme "E se vivêssemos todos juntos"(Stéphane Robelin), um longa que tem cinco atores velhos entre seus protagonistas. Jane Fonda, um ícone dos anos 60 (a eterna "Barbarella") é uma das atrizes "velhas"; a outra é Geraldine Chaplin. 



Jane Fonda com Barbarella, no final dos anos 60
O enredo trata da história de cinco amigos de longa data que estão envelhecendo juntos (dois casais e um solteirão bon vivant). Ao darem-se conta da debilitação da saúde, eles resolvem morar juntos, a fim de se ajudarem e cuidarem um do outro. Há várias passagens engraçadas, mas o choro veio fácil por quase todo o tempo. O curioso é que os sexágenários companheiros de sala riam às gargalhadas, fazendo parecer que eu estava em uma apresentação de stand up.
Ao sair com olhos inchados do cinema, tive algumas reflexões:

1) Chega de usar o termo "melhor idade". É velhice e pronto. É como chamar gordo de "fortinho" e negro de "moreno". Pavor eterno de eufemismos. Se você precisa amenizar uma característica é porque a considera um defeito. E nenhum destes é, ponto.

2) A velhice é democrática. Ela pode demorar mais ou menos para chegar, mas vem para todos (até para Jane Fonda!), a não ser que você faça o James Dean e morra aos 24. Também a diferença entre belos e feios não é tão abissal na velhice como é na juventude. Sua tia, por exemplo, que sempre teve uma beleza daquelas medianas pode ser hoje, aos 70, muito mais interessante que as musas Claudia Cardinale ou Brigitte Bardot com a mesma idade.


Claudia Cardinale, hoje

3) O tempo pode modificar muita coisa (ou relativizar). Em quarenta ou trinta anos, um passado pode parecer melhor do que de fato, foi. Também algo que parecia muito grave na juventude (como uma infidelidade, por exemplo) pode se tornar insignificante perto de questões como a proximidade da morte ou a perda gradativa da saúde.

4) Casais longevos parecem uma realidade cada vez mais distante, ao contrário de décadas atrás. O projeto de vida de envelhecer junto do parceiro (a), embora legítimo, tem sido cada vez mais difícil de levar a cabo. Em um tempo em que a escolha dos objetos de afeto tem sido cada vez mais narcisista, estar junto da mesma pessoa por décadas tornou-se quase uma utopia. Envelhecer junto implica em suportar a vulnerabilidade do outro, a decadência física, a insegurança e o medo, além de encarar o próprio envelhecimento. Vive-se tempos de muita valorização da potência, da juventude e da beleza. Comprometer-se em um casamento ou um namoro longos implica em renunciar (se o compromisso implicar em fidelidade) a tantos outros possíveis parceiros "muito mais interessantes" por aí. Se, por um lado, não se vive hoje a obrigação de estar com alguém com quem não se quer estar (o que é ótimo), uniões se desfazem facilmente visando a busca da tal "felicidade lá fora".

E, por último, mas não com menos importância: fico feliz com tantos filmes recentes abordando a velhice. Bons atores trabalhando e bons enredos. Além disso, os personagens dos filmes sempre fazem sexo, o que não deixa de ser uma quebra de tabu. Existe sim, sexualidade além dos 70 anos. Ainda bem.

quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Enjoy the silence...

 Após anos em análise, um paciente continua indo ao consultório e deitando-se no divã para contar seus problemas, mesmo após a morte de seu analista. Esta piadinha (sem graça) retrata bem o senso comum a respeito do que acontece nos consultórios de psicanálise: muita falação e choro de um lado e silêncio sepulcral do outro. Exageros à parte, o silêncio é sim, importante e tem funções. Nos consultórios e na vida, é preciso saber administrar o silêncio. E não é fácil.

Nos últimos tempos tem havido um elogio da falação incessante. É urgente expor o que se pensa, mesmo que ninguém esteja minimamente interessado nisso. Você entra no twitter e no facebook e é como se estivesse no meio do burburinho. Reclamações, indiretas, ataques, críticas políticas, lamentações, declarações de afeto e do que se comeu no almoço. Nos sites, muita gente comenta sem nem  ler direito o texto. Muitas vezes, critica-se o autor de um artigo que defende exatamente o que o comentarista acredita. Há uma confusão importante entre falar, escrever (de forma catártica, muitas vezes) e, de fato, comunicar alguma coisa.

Na verdade, há coisas que não precisam ser ditas. Inclusive, perdem a beleza se assim forem. Aliás,  a linguagem nem sempre é capaz de "dar conta" de alguns afetos. Não há momentos em que ficamos mudos diante de algo que nos toma? Susto, choque, tristeza, alegria intensa? É o famoso momento-clichê do "simplesmente faltam palavras para descrever". E faltam mesmo.

 "The human heart has hidden treasures,
In the secret kept, in the silence sealed,
The thoughts, the hopes, the dreams, the pleasures,
Whose charms are broken, if revealed."
(Charlotte Brönte)


Em outras situações, é preciso falar para não enlouquecer. É comum, por exemplo, uma certa verborragia diante de uma emoção forte, o tal falar sem parar, sobre o mesmo assunto. Apaixonados se comportam assim. Pessoas que passaram por situações traumáticas também. É aí que as palavras transbordam e chegam a derramar.




"Words are very
Unnecessary
They can only do harm."

 
A música do Depeche Mode é linda mas, a bem da verdade, silêncio e palavras em excesso podem fazer mal, fora ou dentro dos consultórios. No entanto, para dosar bem uma coisa e outra, é preciso treinar a escuta do outro (s), algo que tem sido artigo raro  por aí. Ouvir bem, ouvir com cuidado, falar idem: taí um excelente presente de Natal. Um presente que não tem preço.

quarta-feira, 5 de dezembro de 2012

Sessão de Terapia - o balanço final

 A primeira temporada de "Sessão de Terapia" chegou ao fim e deixa alguns saudosos por aí (eu, inclusive). Não é, de fato, uma série para grandes audiências, mas conseguiu um público cativo, o que acabou garantindo uma segunda temporada para 2013. Não assisti à versão americana, mas pelo que pude constatar, o roteiro é basicamente o mesmo em todas as versões ao redor do mundo, com algumas adaptações. O grande mérito de Selton Mello (o diretor brasileiro) talvez tenha sido o de apresentar, em papéis de destaque, atores pouco conhecidos do grande público ou que estavam esquecidos. Esta, aliás, tem sido uma marca registrada do ator enquanto diretor. Em seus filmes, por exemplo, ele "ressuscitou" Darlene Glória, Moacyr Franco e Ferrugem. Em "Sessão de Terapia", à parte Maria Fernanda Cândido e Maria Luiza Mendonça, todos os outros atores eram pouco ou nada conhecidos. E deram um show:
 
Théo (Zécarlos Machado)

Zécarlos Machado tem uma trajetória reconhecida no teatro, mas na televisão sempre obteve papéis secundários. Lembro-me sempre dele por ter sido o amante-comparsa da "vilã de história em quadrinhos" Nazaré (Renata Sorrah) em "Senhora do Destino" (2004). Também  ao lado da atriz, o ator interpretou um marido pouco compreensivo e homofóbico em "Páginas da Vida" (2006).

Cena de "Páginas da Vida" (2006)
Assim sendo, inicialmente causou-me estranheza a escolha do ator para o papel. Incomodou-me inclusive sua voz (seria fumante?) e dicção. Para mim, ele seria perfeito para o papel de bandidão, não de analista. No entanto, acabei gostando muito do Theo que ele compôs. Entre outros tantos episódios, aquele em que ele atende o pai de Breno (Sérgio Guizé) foi especialmente tocante. Nas redes sociais, Zécarlos foi alçado à condição de galã, despertando paixões por aí. Isso comprova o poder incrível que um papel pode ter (ou o que o papel de um bom analista pode despertar).


Breno (Sérgio Guizé)

Sérgio Guizé, junto de Bianca Müller (Nina), era o rosto menos conhecido da série. Talvez isso tenha contribuído para dar ainda mais verossimilhança ao atormentado Breno. O personagem foi capaz de despertar as mais diversas emoções em quem assistia (raiva, asco, pena, ternura). Seu final causou comoção nas redes sociais. 

Sérgio Guizé, irreconhecível, na pele de um travesti em "Tapas e Beijos"
 
Nina (Bianca Müller )

Formada em Rádio e TV, Bianca Müller foi a grande aposta de Selton. Ela interpretou a ginasta adolescente Nina. Com 22 anos, Bianca deu vida a uma adolescente de 15 anos de forma convincente e sensível. A personagem chamava a atenção por tantas características que a incrível beleza de Bianca conseguia ficar em segundo plano.

Bianca Müller


Ana (Mariana Lima) e João (André Frateschi)

Mariana Lima em "O rei do Gado" (1996)
 
Mariana Lima é muito lembrada pelos noveleiros de plantão por seu primeiro papel na tevê: Liliana, a namorada rejeitada de Marcos Mezenga (Fábio Assunção) em "O rei do gado" (1996). Seu drama era embalado pela música-chiclete de Daniela Mercury ("...quando não tinha nada, eu quis, quando tudo era ausência, esperei..."). Atriz muito identificada pela intensidade com a qual mergulha em seus trabalhos (seja no cinema ou teatro), Mariana deu vida à complexa Ana, talvez uma das melhores atuações de "Sessão de Terapia". Junto dela estava André Frateschi, o "marido" João. André é filho dos atores Denise del Vechio (tem os olhos dela, aliás) e Celso Frateschi. Em novelas, fez vários coadjuvantes cômicos.

Na série, ele compôs uma bela dupla dramática com Mariana Lima. As sessões do casal (sempre às quintas feiras) eram um verdadeiro show dos atores. Aliás, era difícil dormir após assistir às terríveis sessões de quinta feira.

Dora (Selma Egrei)

Selma Egrei nos anos 70
A experiente Selma Egrei foi a escolha de Selton Mello para interpretar Dora, a analista-supervisora-amiga-colega de Theo. Pouco conhecida do grande público, Selma Egrei fez muitos filmes nos anos 70. Em novelas, fez algumas participações. É mais lembrada como a mãe ambiciosa de Christine Fernandes em "A Favorita" (2008). Seu olhar de "madrasta da Branca de Neve" deu o tom gélido e distante que Dora precisava. Selma Egrei me convenceria facilmente como psicanalista, se a encontrasse em algum congresso por aí.


Posso dizer que, enquanto psicóloga, muitas coisas de "Sessão de Terapia" me incomodaram (em relação a questões técnicas do profissional). No entanto, como telespectadora, posso dizer que programa cumpriu sua função e conseguiu comover.Também introduziu o universo do trabalho solitário do psicoterapeuta a quem sabia pouco sobre ele. Os pacientes retratados eram especialmente resistentes (e agressivos), o que contribuiu para o sofrimento do personagem do terapeuta, um homem já atormentado. Não é sempre assim na "vida real", embora seja crível encontrar pacientes como aqueles. E o "espetáculo dramático" só funcionou porque os atores eram bons. Não foram raras as vezes em que fui às lágrimas. Mérito do elenco (excelente) e do diretor. Fiquei pensando em quantos outros talentos não devem estar por aí escondidos, enquanto ficamos enjoados de ver sempre os mesmos rostos na tevê. Fico no aguardo da segunda temporada com novas (e boas) surpresas.



domingo, 25 de novembro de 2012

Sabrinas, Julias, Biancas e afins...

"Menina, não lê isso não, vai te fazer mal".

Ouvi este conselho aos quinze anos, de um rapaz mais velho da turma, que devia contar seus vinte e um. Eu havia acabado de trocar livros com uma amiga, era um dos nossos hábitos. Na época, comprávamos livros da Agatha Christie, da Coleção Vagalume e muitos, muitos da coleção Julia, Sabrina e Bianca. Os numerosos romances de encadernações vagabundas enchiam uma sacola.



Os livros costumavam ser romances açucarados em lugares paradisíacos. Alguns eram mais picantes, mas aprendíamos a localizá-los pelo nome da autora (geralmente eram mulheres). Havia uma outra coleção, a "Momentos Íntimos" que eram mais apimentados, de fato. Nada escandaloso, nada que se compare ao best seller do momento,  a trilogia dos "50 tons".

No entanto, algumas coisas compunham a receita básica dos livros e, incrivelmente, fazem sucesso até hoje entre mulheres de várias idades. O herói do romance é belo, forte e geralmente, rico. A mocinha pode ser destemida e corajosa, ou doce e delicada, mas é sempre magra, bonita e bem educada. Os cenários, invariavelmente, são lugares belos e cheios de luxo.

Lembro-me até hoje da descrição de um herói desses romances. Ele era mais velho (coisa rara, tinha por volta dos quarenta anos, quando a maioria tinha cerca de vinte e tantos). Foi a primeira vez que ri ao ler a descrição (sempre rica em pormenores) e constatei o ridículo do negócio:

"Luke tinha um bronzeado invejável, que contrastava com seus cabelos prateados. Ele a encarava com seus olhos profundos, azuis como os de um husky".


"Ele era capaz de despí-la apenas com o seu olhar"

Foi assim que me cansei das Sabrinas. Romances com tramas "românticas" precisam ser muito bons para não ficarem ridículos. Romances eróticos precisam ser extremamente bons para não serem cafonas. A maioria deles você lê e quase chega a ouvir o Kenny G. e o Roberto Carlos ao fundo.

Penso que romances como "50 tons" chegam a ser tão irreais quanto um filme pornô. A mocinha nunca transpira, nunca está cansada e com olheiras, não tem TPM, não tem dor, está sempre com a manicure e a escova em dia. Imagina se ela vai se preocupar como o frizz nos cabelos e se esqueceu de tomar a pílula anticoncepcional! Mas é claro, dirão alguns, os livros são para as mulheres sonharem, se projetarem para lugares que não conhecem, nos braços de homens maravilhosos e super-power-plus. Pode ser.

No entanto, literatura erótica para mim, da boa, não é essa. Há muitos livros bons por aí, de Anaïs Nin a Ana Ferreira. João Ubaldo Ribeiro não conta, pois "A casa dos budas ditosos" não parece ser contado por uma mulher. Se querem um filme, procurem pelo espanhol "Lucía e o sexo"(2001), um belo longa erótico. A protagonista, vivida pela linda Paz Vega, é palpável, real, humana. E Drummond, meu querido Drummond, também escreveu um lindo livro de poemas, "O amor natural".

Tanto em literatura, como nos filmes, é necessária alguma identificação com a (o) protagonista. É preciso sentir-se ali. Há sim uma boa dose de "é ali que eu QUERO estar", especialmente em situações inviáveis na vida cotidiana, mas prefiro poucos devaneios. Hoje eu entendo melhor o conselho do meu antigo amigo, tão jovem ainda em seus vinte e poucos anos. Literatura (mesmo a ruim) não fez mal a mim, nem tão pouco os protagonistas perfeitos. No entanto, a vida real é MUITO diferente da ficção, embora possa ser bem mais interessante também.

Desejo e Amor

Desejo e amor. Irmãos. Por vezes gêmeos; nunca, porém, gêmeos idênticos (univitelinos)


Desejo é vontade de consumir. Absorver, devorar, ingerir e digerir — aniquilar. O desejo não precisa ser instigado por nada mais do que a presença da alteridade. Essa presença é desde sempre uma afronta e uma humilhação. O desejo é o ímpeto de vingar a afronta e evitar a humilhação. É uma compulsão a preencher a lacuna que separa da alteridade, na medida em que esta acena e repele, em que seduz com a promessa do inexplorado e irrita por sua obstinada e evasiva diferença. O desejo é um impulso que incita a despir a alteridade dessa diferença; portanto, a desempoderá-la [disempower]. Provar, explorar, tornar familiar e domesticar. Disso a alteridade emergiria com o ferrão da tentação arrancado e partido — quer dizer, se sobrevivesse ao tratamento. Mas são grandes as chances de que, nesse processo, suas sobras indigestas caiam do reino dos produtos de consumo para o dos refugos.
Os produtos de consumo atraem, os refugos repelem. Depois do desejo vem a remoção dos refugos. É, ao que parece, como forçar o que é estranho a abandonar a alteridade e desfazer-se da carapaça dissecada que se congela na alegria da satisfação, pronta a dissolver-se tão logo se conclua a tarefa. Em sua essência, o desejo é um impulso de destruição. E, embora de forma oblíqua, de autodestruição: o desejo é contaminado, desde o seu nascimento, pela vontade de morrer. Esse é, porém, seu segredo mais bem guardado — sobretudo de si mesmo.

O amor, por outro lado, é a vontade de cuidar, e de preservar o objeto cuidado. Um impulso centrífugo, ao contrário do centrípeto desejo. Um impulso de expandir-se, ir além, alcançar o que "está lá fora". Ingerir, absorver e assimilar o sujeito no objeto, e não vice-versa, como no caso do desejo. Amar é contribuir para o mundo, cada contribuição sendo o traço vivo do eu que ama. No amor, o eu é, pedaço por pedaço, transplantado para o mundo. O eu que ama se expande doando-se ao objeto amado. Amar diz respeito a auto-sobrevivência através da alteridade. E assim o amor significa um estímulo a proteger, alimentar, abrigar; e também à carícia, ao afago e ao mimo, ou a — ciumentamente — guardar, cercar, encarcerar. Amar significa estar a serviço, colocar-se à disposição, aguardar a ordem. Mas também pode significar expropriar e assumir a responsabilidade. Domínio mediante renúncia, sacrifício resultando em exaltação. O amor é irmão xifópago da sede de poder —nenhum dos dois sobreviveria à separação.

Se o desejo quer consumir, o amor quer possuir. Enquanto a realização do desejo coincide com a aniquilação de seu objeto, o amor cresce com a aquisição deste e se realiza na sua durabilidade. Se o desejo se autodestrói, o amor se autoperpetua.

Tal como o desejo, o amor é uma ameaça ao seu objeto. O desejo destrói seu objeto, destruindo a si mesmo nesse processo; a rede protetora carinhosamente tecida pelo amor em torno de seu objeto escraviza esse objeto. O amor aprisiona e coloca o detido sob custódia. Ele prende para proteger o prisioneiro.

Desejo e amor encontram-se em campos opostos. O amor é uma rede lançada sobre a eternidade, o desejo é um estratagema para livrar-se da faina de tecer redes. Fiéis a sua natureza, o amor se empenharia em perpetuar o desejo, enquanto este se esquivaria aos grilhões do amor.



BAUMAN, Zygmunt. AMOR LÍQUIDO: sobre a fragilidade dos laços humanos. Trad. Carlos Alberto Medeiros. – Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 2004. Pág. 23-25

quarta-feira, 7 de novembro de 2012

Você prefere filme DUBLADO?!


Li, recentemente, que tem crescido o número de salas de cinema no Brasil que exibem filmes dublados. E não são só os infantis. Dia desses, ao apresentar um filme para um grupo de adolescentes, eles logo se manifestaram: "Ah, mas não é dublado?". Du-bla-do. "Ué - brinquei - vocês não sabem ler?". Por que catzo alguém prefere uma dublagem a là Fucker and Sucker à voz (e interpretação) originais do ator? Sim, Letícia, alguns adultos não sabem mais ler. Ou lêem pior. Ou tem preguiça do combo "assistir filme + ler legenda". E aí Botucatu, que mal tem um cinema, passou a exibir o único filme da semana DUBLADO. Análises e críticas sociais à parte, eu me lembrei que existem, sim, filmes que eu aprecio com dublagem. E isso teria mais a ver com a memória afetiva do que propriamente com a dificuldade em ler legendas.

 Scarlett, me beije, me beije!


"E o vento levou" (1938) é um desses classicões que foram exibidos pela primeira vez na televisão nos anos 80 e reprisado ad eternum depois. A primeira vez que ouvi a voz original do ator Clark Gable, eu estranhei. Para mim, a voz dele era aquela rouca que pedia a Scarlett que o beijasse. E como esquecer da voz (dublada) da escrava Mammy, correndo atrás da patroa (Dona Scarlett, dona Scarlett!)? Em relação às séries, Macgyver sempre terá a voz do He-Man e o Alf (o E-Teimoso), a voz do seu Peru (Orlando Drummond).

O mais engraçado é assistir filmes dos anos 50 que foram dublados nos anos 70 e trazem gírias, portanto, da época da dublagem ("podiscrê" e "prafrentex", por ex). Ou uma interpretação empolada que, de fato, combina com a época do filme ("Puxa, rrrrrrrapaz, que garota!"). Isso sem contar a tradução dos títulos. Nos anos 50, a tradução era dramática, sendo comum palavras como por exemplo, suplício ("Almas em Suplício", "O suplício de uma saudade"). Quem, hoje em dia, usa a palavra suplício, minha gente?

Descobri, dia desses, que "pantera" é uma gíria dos anos 70 que diz respeito às mulheres entre 30 e 40 anos muito bonitas e "fatais". Gata seria a adolescente bonitinha; pantera, a sua versão mais velha. Gata ficou, mas pantera virou gíria datada. No entanto, foi esse o nome que deram para o seriado "Charlie´s Angels" que virou "As panteras". "Good morning, angels" virou "Bom dia, panteras!" 

"As panteras" e sua versão setentinha
 Em resumo, filme dublado costuma ser um horror, mas tem lá o seu charme quando é "vintage". Algumas dublagens ficaram tão clássicas que é possível lembrar frases inteiras com a voz do dublador. Impressionante como voz e música podem trazer memórias afetivas tão intensas. Saudades da voz grave que dizia "versão brasileira, Herbert Richers". Tempos bons.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Sobre novela, futebol e paixão...


“Um homem pode mudar de tudo. De cara, de família, de namorada, de religião, de Deus. Mas há uma coisa que não se pode mudar, Benjamín. Não se pode mudar de paixão.”

Esta frase emblemática marca um importante momento do filme argentino "O segredo dos seus olhos", de 2009. E é a partir dela que dois detetives encontram a pista que precisavam para encontrar um suposto assassino, apaixonado pelo time do Racing. Passaram-se anos, o tal homem havia mudado, por certo, mas a paixão pelo futebol continuaria ali, intacta, raciocinaram eles. E é nesse momento que é exibida, de forma magistral, uma das melhores cenas de estádio que eu já vi no cinema. É paixão pura, o que, aliás, é o tema central do filme (seja por um time, por uma mulher, por uma causa, por uma vingança). 

Sequência da cena de perseguição no estádio argentino de Huracán
 
"São demais os perigos dessa vida para quem tem paixão (...)" (Vinícius de Moraes)

Pensei no tema ao observar a corrida de muitas pessoas para voltarem para casa na última sexta feira para assistirem ao final da novela "Avenida Brasil", da Rede Globo. Muita gente ensandecida para saber logo o final de Carminha, Nina e da família Tufão. Falou-se até de riscos de queda de energia, tamanha seria a audiência. Não chegou a tanto. Comparou-se o final da novela com outro fenômeno de audiência neste ano que também esvaziou as ruas: a final da Libertadores, com Corinthians e Boca Juniors. Sou noveleira desde criancinha, mas não gosto tanto de futebol. No entanto, achei interessante e curioso tanto o movimento para ver a novela, como para ver o jogo.Ainda que não se goste do resultado, é um motivo pra festa, para adrenalina, para torcida, riso e choro. Não passa pelo pensamento racional. No outro dia, voltamos ao nosso cotidiano banal, seja para falar mal do Corinthians, seja para falar da Carminha assassina. É uma paixão dessas passageiras, a não ser que você seja torcedor da Fiel ou um stalker da Adriana Esteves.

Carminha, uma mulher de paixões

E, enquanto assistia à novela, comentei no facebook e twitter. No twitter, recebi ameaças (!) de unfollow. Em ambas as redes sociais, li comentários de que assistir à novela era reflexo da falta de cultura do brasileiro. Li também que quem assistia à novela não deveria saber quem é o ministro da Justiça ou da Educação do Governo Dilma (!). Pensei cá com meus botões: gente culta não assiste novela? Gente politizada não gosta de futebol? Por que tem de ser uma coisa ou outra? E por que, simplesmente, não podemos nos ocupar de bobagens de vez em quando?

Aí eu recorro ao Houaiss para falar de outro termo: alienação.

n adjetivo e substantivo masculino
2    que ou aquele que sofre de alienação mental; louco, maluco, doido
3    Uso: informal.
     que ou aquele que sofre de alienação, que vive sem conhecer ou compreender os fatores sociais, políticos e culturais que o condicionam e os impulsos íntimos que o levam a agir da maneira que age
3.1    que ou aquele que, voluntariamente ou não, se mantém distanciado das realidades que o cercam; alheado

Se há paixão por algo, existe sim, um quê de destempero e "loucura". A paixão aliena e estamos todos sujeitos a ela. Pode ser inclusive, a paixão por um partido político, por um teórico da psicanálise, por uma religião ou por um participante do BBB. Como se diz no senso comum, há louco para tudo e a paixão é democrática e cega. No entanto, eu não sou necessariamente uma alienada porque corri pra casa ver o último capítulo da novela.

"O segredo dos seus olhos" conta uma estória defendendo a idéia de que algumas paixões não mudam nunca. Algumas delas, aliás, podem até destruir uma vida. Não sei se concordo com isso. O que sei é que um pouco de paixão neste mundo em que os afetos precisam ser tão quantificados, racionalizados e medicados deve trazer algum bem. Nem que seja por uma noite. Pela Carminha, pelo Corinthians ou por alguém.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

Sessão de Terapia

"Devolvo em forma de arte tudo o que o meu terapeuta fez por mim" (Selton Mello) 



Fico feliz que Selton possa fazer arte como forma de agradecimento a alguém. Nem todos podem. Mais feliz  fico ainda com a versão (enfim) brasileira da série israelense "Be tipul", que ganhou adaptações em cerca de trinta países. Digamos que não é frequente assistir a um psicoterapeuta como protagonista de uma série de televisão. É uma profissão solitária, com uma rotina repleta de silêncios e baseada, especialmente, na repetição dos conteúdos. Como competir com o cotidiano heróico dos médicos em uma unidade de emergência ou com as intrigas "espetaculosas" dos escritórios de advocacia? Sem dúvida, não é uma série para grandes audiências. E, para o telespectador da área psi, há algumas incongruências técnicas que incomodam um pouco. Ainda assim, eu diria que o saldo é positivo.

Selton Mello deixou claro, em algumas entrevistas, que optou por não definir a orientação teórica do psicoterapeuta interpretado por Zécarlos Machado. No entanto, ele usa o termo "transferência erótica", conceito desenvolvido pela psicanálise. Aliás o manejo da transferência (entre outras coisas) é o que diferencia a psicanálise de outras psicoterapias que não trabalham  com o inconsciente. Jung e Freud apanharam bastante nos primórdios da psicanálise para lidar com a tal transferência, como bem abordou o recente filme "Um método perigoso" (2011). O psicoterapeuta/psicanalista fictício Theo continua apanhando com isso na série. Sai Keira Knightley, entra Maria Fernanda Cândido. Lindas mulheres histéricas e fatais que enlouquecem seus analistas. Clichê dos clichês, mas funciona.

Os grandes casos clínicos de Freud (O homem dos ratos, O homem dos Lobos, O caso Dora, entre outros) são livros que podem ser comparados a grandes narrativas de suspense, inclusive nos títulos. Você lê e vai descobrindo aos poucos o mistério que envolve o sofrimento daquelas pessoas, acompanhando o raciocínio feito por Freud que poderia, sem dúvida, ter sido um grande romancista. A série "Sessão de terapia" tem também esse mérito. Ao longo do quase monólogo que é cada capítulo-sessão, o telespectador vai descobrindo os personagens-pacientes juntamente com o terapeuta Theo. E nada é o que parece ser.

Em relação ao local de trabalho, não há divã, o psicoterapeuta atende em casa e não tem sala de espera. Tudo isso dificulta o trabalho do pobre homem, por demais atormentado para um psicoterapeuta com vinte anos de trabalho na área. No entanto, sem dificuldades, não há série. O que seria de "Sessão de terapia" se o herói não sofresse e fosse um intelectual pedante, não é mesmo?
Para encerrar este texto, retorno à frase que sintetiza o agradecimento de Selton ao seu analista. A frase me lembrou dos tempos que ainda era uma estagiária de psicologia. A mãe de uma pequena paciente tecia uma colcha na sala de espera enquanto sua filha era atendida. Ao final de muitos meses de atendimento, ela presenteou minha colega de estágio com uma linda e colorida colcha, como forma de gratidão. Penso que, sendo uma colcha ou uma série de tevê com ampla divulgação, é alentador saber que o trabalho do psicoterapeuta/psicanalista possa ser visto e reconhecido como algo sério. É complexo, é sofrido, exige estudo, supervisão constante e análise pessoal. Não é festa, não é bate papo, não é conversa de comadres. E citando a psicanalista Diana Corso:

"Psicanálise não deixa de ser uma oficina de escrita: diários prolixos, contos arrebatados, meticulosas novelas de fôlego. Edito, apenas."

 Que Selton continue reverenciando dignamente seu psicanalista. Eu torço por isso.

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Medianeras

"Medianeras" são as chamadas paredes cegas que dão para um prédio vizinho. Na Argentina, de acordo com o Código Civil, elas não podem ser mexidas, ao menos no papel. Assim sendo, não é possível abrir janelas nas medianeras, apenas na frente e no fundo dos apartamentos. O filme "Medianeras" trata justamente deste assunto: como a arquitetura de uma cidade pode contribuir significativamente para o isolamento e a solidão. É Buenos Aires, mas poderia ser São Paulo, Nova Iorque ou qualquer outra metrópole.

Mariana, Martin e os desencontros

 "Estou convencido de que as separações, os divórcios, a violência familiar, o excesso de canais a cabo, a falta de comunicação, a falta de desejo, a apatia, a depressão, o suicídio, as neuroses,os ataques de pânico, a obesidade, as contraturas, a insegurança, a hipocondria, o estresse e o sedentarismo são responsabilidade dos arquitetos e da construção civil. Destes males, salvo o suicídio, padeço de todos”. Martin, o jovem protagonista (e um dos narradores do filme) começa a contar sua estória desta (dramática) maneira e responsabilizando a "selva de pedra" por seus males psíquicos. Ele pouco sai de casa por conta de uma diagnosticada "fobia social". Mariana, uma arquiteta que trabalha com decoração de vitrines de lojas, é sua vizinha no prédio. Ela tenta reconstruir sua vida após o término de um relacionamento de quatro anos, com toda a dor que isso implica. Os dois se cruzam por várias vezes, mas não se vêem.

"Medianeras" é um filme sobre a solidão de todos nós. Aquela solidão cotidiana, familiar, especialmente para quem mora nos grandes centros urbanos. Não chega a ser um filme angustiante como "Encontros e Desencontros" (2003) ou mesmo "Shame"(2011), mas tem lá sua "angustiazinha". Em um dos momentos mais tocantes do longa, Mariana assiste ao filme "Manhattan" (1979), uma referência simpática a Woody Allen, o diretor que sempre tem a cidade (especialmente Nova Iorque) como protagonista de seus enredos. Não é, ainda que o subtítulo em português possa induzir, uma estória sobre o romance entre pessoas que se conhecem pela internet. Aliás, o filme é um elogio do acaso. O diretor parece dizer que, em algum momento, você (assim como os protagonistas), de fato, pode encontrar uma pessoa "especial". No entanto, há a possibilidade de esbarrar nela por diversas vezes sem se aperceber disto.



O cinema argentino tem trazido boas surpresas, ao menos para mim. Acho incrível a forma como eles contam as estórias. Pode ser uma estória já bem conhecida, mas a forma como a narrativa se organiza é encantadora e, muitas vezes, impactante. "O segredo de seus olhos" (2009), por exemplo, é um filme argentino que figura entre os meus preferidos.O fato de não ter atores tão conhecidos para nós (como os hollywoodianos e brasileiros) ajuda a dar mais verossimilhança ao que é contado. Algo da direção de "Medianeras" remete a "500 dias com ela", especialmente no aspecto "lúdico" e às referências pop. Também faz lembrar pela menção à arquitetura e por ser uma "comédia" romântica com um pezinho na melancolia. A mim, trouxe doçura para uma noite fria e deu vontade de sair abrindo janelas por aí.

PS: A obsessão da protagonista pelo jogo "Onde está Wally" me lembrou este post antiguinho, um dos poucos confessionais deste blog...

terça-feira, 18 de setembro de 2012

Cidades pequenas: ame-as ou deixe-as?

Quem nasceu e cresceu em cidade pequena sabe bem o que é estar constantemente sob o olhar alheio. Sendo a moça mais rica da escola, o filho do prefeito, o padre da principal paróquia ou o discreto vigia do banco, em algum momento, por excessos ou silêncio, sua vida será comentada. Um filme dos anos 50 fez muito sucesso por tratar dos dramas vivenciados em grau máximo pelos moradores de uma cidade chamada "Peyton Place", que ganhou no Brasil o irônico título de "Caldeira do Diabo". Sem ir tão longe, Dias Gomes escreveu maravilhosamente sobre o microcosmo das pequenas cidades como Asa Branca (em Roque Santeiro) e Sucupira (em O Bem Amado). Aguinaldo Silva seguiu a mesma linha em suas tramas regionalistas.

Em uma cidade pequena, o supermercado do centro é um ponto de encontro, assim como a missa, a pizzaria ou a pista de atletismo em que as pessoas caminham de manhã e à tarde. É praticamente impossível sair de casa sem esbarrar com um rosto familiar. Aliás as pessoas, conhecidas ou não, sabem quando você trocou de carro, de namorado ou viajou. É comum ouvir: "vou te contar uma novidade, mas você já deve estar sabendo, a cidade inteira já sabe..."



Quando você é criança ou adolescente, a pequena cidade é o seu universo. Para algumas pessoas adultas, aliás, esta crença permanece. A vida amorosa  das pessoas que vivem nesses lugares é um livro aberto. Mesmo não tendo trocado um oi com Fulano, você sabe quantas namoradas ele teve e por quanto tempo. "Fulano está com Beltrana, mas não adianta, ele sempre vai gostar de Sicrana, a primeira namorada..." Ah, como podem ser românticas as novelas imaginadas por moradores de pequenas cidades...

Muita gente que mora em cidade pequena, saindo ou não para estudar fora, sonha em mudar para uma cidade maior, a capital, de preferência. Tem-se a impressão que é "lá que as coisas acontecem" e que "algo está sendo perdido" se você continuar no interior.  Afinal, chega de ser tão visto, eu quero ser um número, quero pintar o cabelo de roxo, quero sair com quem eu quiser sem ninguém saber, quero ir ao teatro, quero ir para a balada em dia de semana! Isso sim, é vida.

A cidade grande pode ser maravilhosa porque podemos brincar de "homem invísível" e, se não quiser mais ver alguém novamente, abrir um alçapão e sumir. E ainda ver aquele show incrível, conhecer um bar ótimo, encontrar aquele ator de novelas na fila do banco e desfrutar continuamente de novos sabores e sons. E ganhando dinheiro, obviamente.

Mas daí vem a nostalgia. Uma saudade repentina do sotaque caipira, do dono da farmácia que viu você crescer, daquele velho conhecido do colégio que lembra que sua letra era redondinha, do ex-namorado que te trata com carinho, das mais diversas pessoas que te abraçam forte e te contam sorrindo que "teve aula com sua mãe" ou "voou com o seu pai". Ah, a cidade pequena pode te oferecer olhares vigilantes, mas também testemunhas da sua história. E isso, olhem só, é bom.

domingo, 9 de setembro de 2012

Brilho eterno de uma mente sem lembranças?

 "Abençoados os que esquecem, porque aproveitam até mesmo seus equívocos"
(Friedrich Nietzsche)


Juliette Binoche e Mathieu Kassovitz em "A vida de outra mulher"(2011)

Fisgada por um filme daqueles "bonitinhos", eis-me aqui, novamente, escrevendo sobre o tempo e a memória. O sotaque francês seduz, Juliette Binoche também, mas "A vida de outra mulher" (2011) não é um filme, digamos, leve. Em certos aspectos faz lembrar muito o brasileiro "O homem do futuro", especialmente em relação aos (muitos) clichês e à trilha sonora bacana, mas ele vai além, é mais denso. E, assim como acontece no longa brasileiro, os atores é que fazem valer o filme, mais do que propriamente o roteiro, que  não é  lá muito original.

Juliette Binoche é Marie, uma mulher que, aos 41 anos, acorda sem se lembrar de nada que acontecera nos últimos quinze anos. Emocionalmente, ela ainda é uma jovem em início de carreira apaixonada e idealista, e não uma mulher bem sucedida, rica e com o casamento em crise. Aos poucos, as circunstâncias vão apresentando a ela (e ao espectador) como foram suas escolhas entre os 20 e os 40 anos que a fizeram chegar onde está. As memórias que Marie têm vão até a primeira noite que teve com o marido, até então seu namorado, no auge do apaixonamento.

A questão que fica é: e se você esquecesse de todas as suas dores, de todas as relações mal acabadas, de todo o ressentimento vivido, como seria sua vida? Haveria mais leveza, você se arriscaria mais?

(...)eu não tinha este coração que nem se mostra.
    Eu não dei por esta mudança,
   tão simples, tão certa, tão fácil:
  Em que espelho ficou perdida a minha face?"
 (Retrato - Cecília Meireles)

Tal tema já foi muito bem trabalhado no já "novo clássico" "Brilho eterno de uma mente sem lembranças" (2004), onde uma clínica oferece às pessoas a experiência de poder esquecer, deletar todas as memórias referentes a um acontecimento ou alguém. O enredo permite a reflexão acerca da repetição. Se eu apagar uma vivência, eu não correria o risco de passar por ela novamente como se fosse a primeira vez? De nada adiantaria eu apagar uma experiência dolorosa, uma vez que outras viriam.Afinal, não é repetindo e elaborando que eu posso seguir em frente?

Em "A vida de outra mulher" Marie tem a chance de rever seu casamento com a mesma paixão dos primeiros dias de relacionamento. Nela, não há a desconfiança e a mágoa que existe no marido. Se eles vão acabar juntando novas e pequena mazelas diárias novamente até chegarem ao mesmo ponto anos depois, não sabemos. Há somente a oportunidade, para Marie, de uma "mente sem lembranças". Não é um típico "filme de chorar", mas prepare os lencinhos.

domingo, 26 de agosto de 2012

Shame

Eu havia lido vários comentários sobre o filme "Shame" antes de assisti-lo. Muitas resenhas diziam que se tratava de um roteiro sobre um jovem bonito e bem sucedido, Brandon, que era "dependente sexual". Contardo Calligaris, psicanalista e articulista da Folha de São Paulo teceu elogios ao filme à época do lançamento, mas o classificou como "moralista": "Shame é, ao mesmo tempo, ousado e careta. Ousado pelo retrato da busca sexual do protagonista (muitos, sem dúvida, se reconhecerão), e careta, porque essa procura parece sempre doentia, culpada e vergonhosa", escreveu ele. Mais bem humorada, a jornalista Tetê Ribeiro sugeriu que o filme  já valia o ingresso pelos primeiros dez minutos, sendo uma verdadeira homenagem às mulheres (Michael Fassbender, o ator principal, tem uma demorada cena de nu frontal já nos primeiros momentos do longa). No twitter, o escritor Marcelo Rubens Paiva fez um alerta aos futuros espectadores do filme: "Vá preparado: Shame dá tesão". Coroando tudo o que tinha lido, eu me deparei com a seguinte capa de revista:
 
 
 
No embalo do filme, Michael Fassbender, o belo, ilustrava a capa de revista GQ como alguém com quem se deve aprender "a ter sex appeal". Logo abaixo da chamada principal, está outra: "Como pegar mulheres (da forma correta)". Além de constatar que as revistas masculinas estão ficando tão idiotas como as femininas, eu fui fortemente sugestionada de que o tal Fassbender era "o cara".
 
Assisti, enfim, o filme. Sozinha. Uma senhora entrou berrando no cinema com o filme já iniciado "Já começou ou é trailer??"  bem na hora do famoso nu. Filme em curso, emocionei-me com  cenas longuíssimas e muito bonitas que conferem mais veracidade à narrativa (a cena em que a irmã de Brandon canta no bar, a cena do primeiro encontro entre Brandon e sua colega de trabalho, entre outras). Propositalmente, as cenas de sexo repetem-se tantas vezes que vão ficando cansativas. Não há um crescendo de excitação, não se trata de um pornô soft, o filme é sobre a angústia do protagonista que busca, incessantemente uma satisfação que não vem. A senhora inconveniente do início do filme, então, manifesta-se novamente, quando Brandon começa a transar pela enésima vez, com uma dupla de prostitutas: "Ai, de novo? Já tá enchendo já". Chatíssima, essa senhora, mas de fato, acho que era essa a idéia que o diretor queria passar. Tanto sexo podia cansar. O apartamento claro e limpo do belo Brandon em Nova York, sempre com o computador logado em algum página de sacanagem parecia um inferno claustrofóbico.
 
 
 
Resumo da ópera: o filme resvala em sintomas da nossa cultura. O próprio Fassbender, em entrevista, após interpretar seguidamente o psiquiatra Carl Jung (Um método perigoso), que vivera no século XIX e início do século XX, e o executivo dos dias atuais Brandon, comentou que a facilidade de obter sexo não mudou o grau de sofrimento das pessoas. Sofriam as histéricas de Freud, sofrem os Brandons da vida. Engana-se quem pensa que as infinitas ofertas de gozo implica que o sujeito de fato goze com elas e usufrua de sua satisfação. Escreveu o psicanalista Laerte de Paula: (...) "as múltiplas ofertas de gozo apenas reafirmam que não gozamos o suficiente da vida. Quanto maior é a oferta de prazeres (muito além dos ‘sexuais’), mais excluídos ficamos da pretensão onipotente de gozar para valer. Não importa o quanto nos esforcemos, há sempre uma infinidade de outras possibilidades que estão além de nosso alcance (por questões financeiras, geográficas, morais, etc.) e que permanecerão inexploradas. A conclusão óbvia seria: ora, que um sujeito se contente com seu quinhão de prazeres e renuncie ao empreendimento de um gozo transcendental. Este seria o raciocínio lógico, naturalmente parcial e insuficiente para compreender nossos conflitos (...). Brandon encena seu jogo em um palco de sexo. Outros o fazem em um palco de drogas, ou de bebidas, ou de jogos, ou de religião, ou de trabalho, ou de qualquer objeto que sirva a este grau de alienação."
 
Entendo quando Calligaris diz que o filme é moralista. Os efeitos podem sim, ser moralistas para a platéia, especialmente chegando ao final. A mensagem é: você pode, sim, realizar suas fantasias sexuais mais escandalosas, mas vai perder as pessoas que ama, por vezes até, em definitivo. Acredito que o filme não fala de um viciado em sexo, mas de um narcisista solitário, com dificuldades em construir vínculos. Ao invés de transar sem parar, ele poderia, ficar jogando vídeo game sem parar, por exemplo. A dificuldade seria a mesma, talvez sem o componente da vergonha, que dá o título ao filme. É um filme sobre angústia, realista de doer.E, desculpe, Marcelo Rubens Paiva, assistindo "Shame" por esse prisma, não dá pra sentir tesão.
 
 

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Clarice, sempre ela...

"Não me lembro mais onde foi o começo, foi por assim dizer escrito todo ao mesmo tempo. Tudo estava ali, ou devia estar, como no espaço-temporal de um piano aberto, nas teclas simultâneas do piano. Escrevi procurando com muita atenção o que se estava organizando em mim e que só depois da quinta paciente cópia é que passei a perceber. Meu receio era de que, por impaciência com a lentidão que tenho em me compreender, eu estivesse apressando antes da hora um sentido. Tinha a impressão de que, mais tempo eu me desse, e a história diria sem convulsão o que ela precisava dizer. Cada vez mais acho tudo uma questão de paciência, de amor criando paciência, de paciência criando amor."

(Clarice Lispector)

terça-feira, 21 de agosto de 2012

O tempo

"(...)  Por seres tão inventivo
         E pareceres contínuo
        Tempo tempo tempo tempo
       És um dos deuses mais lindos
      Tempo tempo tempo tempo..."

(Oração ao Tempo - Caetano Veloso)

 
"Você já parou para pensar que vinte anos pode não ser muito tempo?"- perguntou-me um amigo quando eu, assustada, constatava que nossas lembranças de vida já contam duas ou mais décadas. Na verdade, não sei bem a resposta. Até cinco anos podem parecer uma eternidade, dependendo do que se lembra e como se lembra.

Quando temos quinze anos, uma pessoa de trinta é um idoso. Quando se tem sete, o Natal demora uma vida toda para chegar. Quando se tem vinte, duas décadas é a sua vida toda e, portanto, muito tempo. E quando se tem mais de trinta? E quando se tem sessenta, setenta?

O que eu sempre achei curioso é que em muitas telenovelas e filmes  nos quais ocorre a passagem do tempo, dois atores (ou atrizes) interpretam o mesmo papel em fases diferentes. É assim que, por exemplo, o altíssimo Paulo Gorgulho virou o baixinho Claudio Marzo (Pantanal, 1990), Adriana Esteves virou Renata Sorrah (Senhora do Destino, 2004), e a Giulia Gam virou ... a Vera Fisher!


Giulia Gam e Vera Fisher como Jocasta em Mandala (1988)
Ou seja, durante a minha infância e adolescência, o que sempre aprendi com a ficção é que vinte, vinte e cinco anos é tanto tempo que uma pessoa se transforma em outra. E hoje, adulta, observo, surpresa, que, na vida real, sem troca dos atores, isso pode acontecer também. Cadê aquela menina alegre? Cadê aquele cara inventivo? Cadê a amizade que a gente tinha? Cadê aquele amor? Cadê, cadê? Acabou como aquele filme, aquela novela velha. Hoje é outra coisa.

 No entanto, mais surpresa  fico eu quando percebo que amigos, amores de 20 anos atrás atualizam o passado só com a sua presença.  E lá está aquela risada tão familiar, o jeito de andar, os mesmos vícios de linguagem e o prazer bom de estar junto. E de repente, em um (re)encontro, todo mundo é adolescente de novo e também são adolescentes os afetos que se presentificam. Vinte anos não passaram. Foi tudo ontem. É agora.

Freud (sempre ele) dizia que o inconsciente não conhece o tempo. Para ele, o tal  inconsciente, não existiria passado, presente ou futuro. Os sonhos mostram isso para nós quando, por exemplo, sonhamos que a casa  em que moramos quando criança ressurge, como se fosse a casa em que moramos agora. É a casa velha, mas também é a casa nova.

E agora, concluindo o texto e voltando à pergunta do meu amigo querido, eu penso que vinte anos podem, de fato, representar séculos, mas  também podem  não ser nada. Se são dores antigas, que permaneçam como fitas VHS  que não quero rebobinar. Se são afetos bons, que eu possa ter 15, 20 anos de novo. Sem plástica, nem botox.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

Sobre a transitoriedade...

(...) O valor da transitoriedade é o valor da escassez do tempo. A limitação da possibilidade de uma fruição eleva o valor dessa fruição. Era incompreensível, declarei, que o pensamento sobre a transitoriedade da beleza interferisse na alegria que dela derivamos. Quanto à beleza da Natureza, cada vez que é destruída pelo inverno, retorna no ano seguinte, do modo que, em relação à duração de nossas vidas, ela pode de fato ser considerada eterna. A beleza da forma e da face humana desaparece para sempre no decorrer de nossas próprias vidas; sua evanescência, porém, lhes empresta renovado encanto. Uma flor dura apenas uma noite e nem por isso nos parece menos bela. Tampouco posso compreender melhor por que a beleza e a perfeição de uma obra de arte ou de uma realização intelectual deveriam perder seu valor devido à sua limitação temporal. Realmente, talvez chegue o dia em que os quadros e as estátuas que hoje admiramos venham a ficar reduzidos a pó, ou que possa suceder uma raça de homens que venha a não mais compreender as obras dos nossos poetas e pensadores, ou talvez até mesmo sobrevenha uma era geológica na qual cesse toda vida animada sobre a Terra; visto, contudo, que o valor de toda a beleza e perfeição é determinado somente por sua significação para nossa própria vida emocional, não precisa sobreviver a nós, independendo, portanto, da duração absoluta".


(Trecho de "Sobre a Transitoriedade", texto escrito em 1915, por Sigmund Freud)

sábado, 28 de julho de 2012

V, de Vingança


"Quando atacar alguém por vingança, prepare duas covas" (Confúcio)

Na ficção, a garota Rita era maltratada pela madrasta Carmem Lúcia sem que o pai se apercebesse disto. Carmem Lúcia, além disso, enganava o pai de Rita, traindo-o com um amante mau caráter. Quando Genésio, o pai, vende a casa própria que era tudo que a família tinha, Carmem alia-se ao amante para dar um golpe no marido, roubando-lhe todo o dinheiro. A pequena Rita descobre e consegue avisar o pai, que se desvincilha do golpe. No entanto, a caminho da delegacia, Genésio é atropelado por um famoso jogador de futebol e morre. Encarnando uma pobre viúva, Carmem Lúcia, além de ficar com todo o dinheiro do marido, abandona a menina, aos gritos, em um lixão. Posteriormente, ainda dá um golpe no jogador de futebol que, por pena, casa-se com ela. A vingança de Rita, a garota orfã, é o enredo desta trama, da novela "Avenida Brasil", atualmente no ar, pela Globo.

Mel Maia, como "a pequena órfã"

A história de uma garota orfã nas mãos de uma madrasta má e, muitas vezes, invejosa, não é nova.  Os clássicos contos de fada "Cinderela" e "Branca de Neve" estão aí para comprovar. A trama da vingança também não. De " O Conde de Monte Cristo" de  Alexandre Dumas (que inspirou a novela "Sangue do meu sangue", de Vicente Sesso) ao romance "Tieta", de Jorge Amado,  muitos são os dramas com heróis vingativos. A trilogia "Millenium", sucesso estrondoso na literatura sueca e no cinema nos últimos anos, traz uma heroína moderna e vingadora: a andrógina e fascinante Lisbeth Salander.

A saga de Rita/Nina faz também lembrar outra protagonista que quis vingar sua família na teledramaturgia. Malu Mader encarnou Cláudia, a "Fera Radical" (1988) que arquitetou planos de vingança contra a família Flores.


a sexy fera radical Malu Mader

Os planos de Claudia ficam perturbados quando ela se apaixona por Fernando Flores (José Mayer), pertencente à família que ela pretendia vingar. Isso é também comum nas tramas: o grande amor se sobrepõe ao ódio. Foi assim com Ana Francisca (Mariana Ximenes), a moça doce e humilhada que volta para se vingar rica e poderosa de seus algozes em "Chocolate com Pimenta" (2003). No entanto, havia o amor de Danilo (Murilo Benício) no meio do caminho.

Quando nem um grande amor detém a vingadora, então ela não é uma mocinha, é vilã. Em "Celebridade" (2003), a vilã Laura quer tirar tudo de Maria Clara Diniz por vingança. Laura acredita que um sucesso musical composto para Maria Clara teria sido, na verdade, feito para sua mãe. Assim sendo, Maria Clara teria ficado com os louros de uma glória que não era sua e, consequentemente, com os dividendos da canção. A vilã vingadora, claro, é punida no final.

Rita/Nina, a protagonista de Avenida Brasil, não é Cláudia, nem Ana Francisca, nem Laura. Ela se assemelha mais à sueca Lisbeth, seja pelo visual andrógino, seja pela inteligência, seja pela moto. Mais ainda: se assemelha pela neurose. Amor nenhum pára Rita ou Lisbeth. Seus objetivos são outros. Elas não são más, são neuróticas.

A pobre Lisbeth não tem nada a perder. Nina tem. Se, no início, ela perdeu o pai e foi parar no lixão, depois ganhou muitas coisas. Fez amigos no lixão (Jorginho, seu namorado, entre eles) e foi adotada, mais tarde, por uma família rica da Argentina. Ganhou um pai amoroso, irmãs afetuosas e uma educação que talvez seu pai biológico não pudesse dar. O limão, portanto, virou uma limonada. No entanto, ela não consegue desfrutar de nada disso pois só pensa em Carmem Lúcia.

O interessante de Avenida Brasil é mostrar a morte, aos poucos, de Rita/Nina. Ela quer tirar tudo de Carminha, mas ao mesmo tempo, tira tudo de si mesma.  Este é o ineditismo da novela, uma vez que todos os outros temas já foram visitados. O enredo faz valer a frase de Confúcio que inicia este post. O vingador leva o outro para a cova, mas leva a si mesmo também.

Eu, tantas vezes cri-cri com frases consoladoras populares, cito uma delas para encerrar este texto. Nina, minha filha, larga a Carminha pois a melhor vingança, afinal, é ser feliz.


quinta-feira, 26 de julho de 2012

Queixa

Um amor assim delicado
Você pega e despreza
Não devia ter despertado
ajoelha e não reza
Dessa coisa que mete medo
Pela sua grandeza
Não sou o único culpado
Disso eu tenho a certeza

Princesa, surpresa, você me arrasou
Serpente, nem sente, que me envenenou
Senhora, e agora, me diga onde eu vou
Senhora, serpente, princesa
Um amor assim violento
Quando torna-se mágoa
É o avesso de um sentimento
Oceano sem água

Ondas, desejo de vingança
Dessa desnatureza
Bateu forte sem esperança
Contra a tua dureza

Um amor assim delicado
Nenhum homem daria
Talvez tenha sido pecado
Apostar na alegria

Você pensa que eu tenho tudo
E vazio me deixa
Mas Deus não quer que eu fique mudo
E eu te grito esta queixa!

(Caetano Veloso)


domingo, 22 de julho de 2012

Something

"Something in the way she moves
Attracts me like no other lover"

O beatle poeta George Harrison compôs esses inpirados versos da canção "Something" supostamente para Pattie Boyd, que foi sua mulher de 1966 a 74 (quando passou a ser musa de outro ícone, Eric Clapton).  De alguma maneira, a canção fala daquela "coisa" que o objeto amado tem e que não sabemos descrever, expressar em palavras. É simplesmente "aquele algo mais".

"E ela é bonita?" - pergunta a moça aflita, ao saber que o ex está com outra. Pergunta clássica, embora não faça muito sentido. A dor, afinal, ameniza se a atual for mais ou menos bonita? É comum também a frase de desdém: "E nem bonita ela é, nem bonita." E daí?

Às vezes é algo na forma como "ela" (ou ele) se movimenta, diria Harrison. E tem pessoas que se movem lindamente, sem necessariamente terem uma beleza estonteante. Lembrei da música dos Beatles ao assistir o filme "Minha semana com Marilyn" (2011), em que a normalzinha Michelle Williams interpreta ninguém mais, ninguém menos que  Marilyn Monroe.

Marilyn/Norma Jean era muito bonita. Tinha uma pele de bebê e olhos muito azuis. Isso, sem contar o corpo cheio de curvas. Não tinha a beleza simétrica e natural de Elizabeth Taylor, Grace Kelly ou mesmo Brigite Bardot, mas era linda. No entanto, nenhuma atriz do cinema clássico se movia com tamanha graça e sensualidade como Marilyn. Audrey Hepburn tinha graça, mas não tinha o sex appeal. Para entender do que falo, o trecho a seguir dispensa palavras. Trata-se de várias cenas de bastidores de "Something got to give", o filme inacabado de Marilyn, que seria o último de sua vida.



É difícil interpretar um ícone porque será sempre uma imitação e o original é imbatível. O filme de Michelle Williams poderia ser mais outro dos inúmeros sobre Marilyn, mas não é. A atriz foi, merecidamente, indicada ao Oscar de melhor atriz (2012) pelo papel. Estudou minuciosamente a forma como Marilyn se movia (em cena e fora dela). Foi um trabalho arriscado, pois poderia se tornar facilmente uma caricatura, o que não acontece. O filme em si é leve, mas vale pela composição de Michelle.

Assim como Marilyn, mas sem tanta notoriedade, há pessoas que se movem maravilhosamente por aí e cujas fotos não fazem justiça. Toca perguntar agora não se "a outra é bonita" mas, afinal, "como ela se move?". Muito sábio, este George Harrison.

sábado, 26 de maio de 2012

Frases que consolam... ou não

"Quando Deus fecha uma porta, Ele fecha uma janela". Tentando ser otimista em relação a uma determinada situação, nesta semana eu cometi este lapso nada alentador. Quando o inconsciente faz-se presente desta forma tão escancarada, é claro que um psicólogo (e psicanalista) se põe a pensar. Os psicanalistas presentes na mesa, no entanto, fizeram uso da superstição e me ordenaram: "bate na madeira e isola!". E eu bati.

Penso que as frases-clichê consoladoras têm me irritado um bocado ultimamente. Talvez venha daí o lapso pessimista que não permitiu que Deus abrisse uma janela. Elas não têm tido mais efeito em mim, criei anticorpos, na verdade, o que é  uma pena.

"Não era para ser, pensa assim", nos dizem quando levamos um pé na bunda, perdemos o emprego ou coisas do gênero. Quem é que disse, cara pálida? Essa frase tem uma intenção bacana que é a mesma da frase do lapso, pois faz menção a uma esperança de que dias melhores virão. Da mesma família de frases está o famigerado: "o que é seu está guardado". Guardado onde e para quando?

"Ele (a) não te merece". Quem é que disse que bom currículo é sinal de vida amorosa satisfatória, minha gente? O que é o tal merecimento? Sou trabalhador, honesto e sem vícios. Boa gente e sincero. Quem merece estar comigo? E quando se está em frangalhos por alguém, adianta saber que a pessoa não "me merece?" Sim, trata-se de uma bela tentativa de algum resgate narcísico, mas tenho cá minhas dúvidas na capacidade consoladora da frase.

"Para esquecer um amor, só mesmo um outro amor" ou, a grosso modo "a fila anda". Longe de mim querer estimular um período de luto eterno, mas o desespero por encontrar alguém novo ainda com a ferida doendo é pedir para sofrer mais ainda. Se o lugar estiver desocupado, aí sim acredito ser mais fácil. Términos de relacionamento não querem dizer, necessariamente, que o lugar está vago e a fila vai andar.


"Jamais desista dos seus sonhos". Esta é a pior de todas, a clichê das clichês. Persistência é importante, mas alguns projetos precisam ser renunciados sim, para que a vida possa caminhar. Certos sonhos, infelizmente, são apenas perda de tempo. Mais ainda se só ficam em elocubrações e jamais são colocados em prática.

Nossa, mas que  mau humor, que pessimismo! Não sei, a bem da verdade. O que me irrita talvez é o caráter infantilizador de algumas das frases. Esperar um presente logo mais adiante como compensação de um sofrimento, pensar que se o cara me deixou é porque eu sou muito boa para ele, etc, etc. A vida é difícil mesmo, a gente perde coisas, muitas vezes de forma irreversível. Será que não existiria uma maneira mais doce de poder encará-la sem recorrer a tantos subterfúgios? Talvez não, vai saber. Ah, mas que sejam mais criativas, as pobres frases, ao menos. E que nos estimule a sermos adultos, uma vez que não temos mais a idade do menininho aí de cima.