quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Qualquer semelhança...

Em 1988, Gilberto Braga criou uma personagem icônica que, entre os noveleiros, até hoje dá o que falar. Interpretada por Beatriz Segall, a vilã Odete Roitman marcou uma época.Era o final dos anos 80 e vivíamos tempos de abertura política após um longo período ditatorial. Os índices de desemprego preocupavam e a inflação, plano econômico após plano econômico, era galopante. A desigualdade social, que até hoje marca a população brasileira, era abissal. Odete Roitman era a encarnação do rico arrogante, que desprezava os hábitos brasileiros e tinha horror a pobres e nordestinos ("não quero ouvir sotaque de outros estados perto de mim" - disse ela em uma de suas primeiras falas, que tornou-se clássica). Lembrei da lendária Odete ao ler, repetidas vezes, comentários preconceituosos e elitistas no facebook, por ocasião das eleições. Engraçadas ao serem proferidas por uma personagem carismática de novela, frases muito parecidas, quase trinta anos depois, ditas por amigos seus, chegam a assustar. Beatriz Segall chegou a declarar, na época de Vale Tudo, que não queria uma personagem caricata, ela queria que Odete Roitman fosse uma personagem crível, que você pudesse encontrar  entre pessoas do seu convívio. Tanto tempo depois, vejo o quanto ela tinha razão. Não há nada de ficção na dona Odete que ela interpretou, com perfeição.


segunda-feira, 15 de setembro de 2014

Como uma sessão de terapia...


Será que eu virei uma acumuladora daquelas dos programas do Discovery Channel? O que  é esse mundaréu de jornais velhos? E estes textos do segundo ano de faculdade, esses livros de Estatística, os questionários de entrevistas da dissertação de mestrado, a agenda-diário de 1988? Devo jogar tudo? Sim, TUDO. Menos os questionários. Ah, mas já se foram dez anos, o que vou fazer com esses questionários? A agenda não jogo. Tá lá registrado o primeiro amor. Bela coisa, para que vou precisar de uma agenda da Pakalolo? Vai para o lixo, sem dó, nem piedade. Perigoso até atrair baratas essa velharia toda. Lixo, lixo.

E esse livro do Jung? Quando é que eu fui junguiana? Mas o livro é bonito, por isso eu guardei. Jogo? Não, vou vender. Melhor, vou doar. Isso, vou doar. Junto com o livro do Victor Frankl que eu nunca li. Logoterapia? O que é isso mesmo? Não custa abrir e dar uma lidinha. Letra pequena, estou precisando usar óculos, não vou ler nada agora. Vai para a caixa de doações. Lair Ribeiro, sério que eu comprei isso? E o livro da Bridget Jones antes de virar filme? Ah, mas aquele dos "homens são de Marte" tenho certeza de que ganhei, não é possível. Vai para o lixo junto com aquele das "mil mulheres que você vai ser antes dos 35". E este com a famigerada dedicatória, guardo? Livro tão bom, para que tinha que  lembrar desta letra agora? Ignore a dedicatória. É cafona e tem erros de português. Aliás, guarde pela dedicatória. Ninguém mais escreve isso. Peça de museu.

Três caixas cheias de cartas. CARTAS. E bilhetes dos tempos de faculdade. E do colégio. E da QUARTA SÉRIE. Amiga, sério, você tem problemas.Vai ter coragem de jogar tudo? Sim, jogue, desocupe espaço.

Uma Barbie de paetês, outra de casaco de pele e cabelo estragado. Uma Susi noiva. Um urso da Disney. Um rei Leão. Fotos, fotos, fotos. E esta fotita que eu tinha pavor? Até que era bonitinha. Pura sobrancelha e bochechas. O tempo relativiza tudo. Bonitinha. Nossa, uma foto de ex-namorado. Outra foto de ex. E outra! Jogo? Não.

Será que esse sofá vai ficar bom na casa nova? E essa poltrona da vó, combina com a sala? E esse tapete surrado, que eu amo, vai? Não sei, acho que sim. Difícil, muito difícil.

Mudanças de casa, vejam só, implicam em enfrentar dilemas. Grandes. Pequenos. Afinal, o que levo comigo? O que deixo ir? Mania boba de achar que aquele casaco velho ainda tem uso ou que ainda tem perfume naquele frasco. Não tem, venceu. Acabou. Aquela blusa antiguinha bordada com muito orgulho até que ficou bonita, mas tem coisa que não recicla, não adianta enfeitar. E ainda ocupam espaço demais. O bom MESMO é que existem outras coisas que harmonizam perfeitamente com o novo ambiente. E essas podem ficar. Aliás, devem.

sexta-feira, 5 de setembro de 2014

Ainda bem, ainda bem...

(...) O meu coração
Já estava aposentado
Sem nenhuma ilusão
Tinha sido maltratado
Tudo se transformou
Agora VOCÊ chegou
VOCÊ que me faz feliz
VOCÊ que me faz cantar
Assim (...)


segunda-feira, 1 de setembro de 2014

Eternamente responsável... Ou não.

Ao longo da minha vida, ganhei de presente duas edições diferentes de "O pequeno príncipe", de Antoine de Saint Exupèry. Nunca li o livro inteiro. Sempre houve um certo preconceito, confesso. Do alto da minha arrogância pseudo-intelectual, achava um livro menor, "literatura de miss", fofo demais. Aliás, tudo que é fofo em demasia me afasta em primeira instância: a cor rosa, ursinhos, o livro da Pollyanna (alguém lembra?), comédias românticas, Amélie Poulain. Depois, posso até gostar, mas a primeira reação nunca é boa. Ainda tenho horror às comédias românticas e aos livros da Pollyanna, mas tolero o rosa, e já chorei cântaros com a doce Amélie. Ursinhos eu dispenso. Já passei da idade.


Pequeno Príncipe dando a real

Voltando ao Pequeno Príncipe, o capítulo da raposa e da famigerada (e popular) frase "Tu te tornas ETERNAMENTE responsável por aquilo que cativas" sempre me causou calafrios. Achava a raposa uma carente perigosa, quase uma psicopata. Fazia lembrar Kathy Bates naquele filme horroroso "Obsessão Cega", além de outras personagens malucas de filmes similares. 

Medo eterno de Kathy Bates

Exagero, claro. Mas ETERNAMENTE sempre pareceu tempo demais. Tantas vezes cativa-se sem perceber. Relacionamentos acabam, amizades se esgotam, amores terminam. Uma das partes, fatalmente, pode sofrer mais. Até que ponto a parte que saiu bem da estória toda é responsável por essa dor do outro? Pouco responsável? Muito responsável? Depende tanto, de tantas coisas, de tantos fatores. 

Ressalvas à parte, há um trecho bonito (entre outros) na fala da Raposa para o principezinho. É o que transcrevo a seguir:

"E depois, olha! Vês, lá longe, o campo de trigo? Eu não como pão. O trigo para mim é inútil. Os campos de trigo não me lembram coisa alguma. E isso é triste! Mas tu tens cabelo cor de ouro. E então serás maravilhoso quando me tiverdes cativado. O trigo que é dourado fará lembrar-me de ti. E eu amarei o barulho do vento do trigo... "

Hoje, se nos deixarmos cativar, é só substituir o "cabelo de ouro" do Pequeno Principe:

"Eu não bebo vinho. O vinho para mim é inútil. Cabernet Sauvignon e Malbec não me lembram coisa alguma. (...) Mas tu bebes vinho como ninguém. (...) Vinhos chilenos e argentinos farão lembrar-me de ti. E eu amarei o cheiro do vinho..."

"Eu odeio música sertaneja. Eu nem sei quem são Jorge e Matheus (...) Mas tu sabes todas as músicas deles decor (...) Ouvirei "Amo noite e dia" e lembrarei de ti. E eu amarei sertanejo universitário..."

"Eu só assisto filme americano dublado. Sabe-se lá quem foi Truffaut e Fellini (...) Mas tu adoras cinema europeu (...). Assistirei "La dolce vita" e lembrarei de ti. E eu amarei filmes sem entender o final..."

Mas diz ainda a raposa para o Pequeno Príncipe:

"Foi o tempo que perdeste com a tua rosa que a fez tão importante(...)"

Eu diria, então, se pudesse interferir na conversa: "Se algo bom ficou, caro principe, nunca é tempo perdido. Ainda que tua rosa vá embora, nunca será tempo perdido. Há que se tomar cuidado com os sentimentos das pessoas, mas você não é eternamente responsável pela rosa, nem por ninguém". E, fazendo agora um parentêses pessoal: Willy e Cláudia, meus sensíveis amigos, "O pequeno príncipe"  que era, para mim, um livro inútil, que não me lembrava nada, nunca mais será como tantos outros livros fofos. Pois me lembrarei de vocês. Sempre. :-)

sexta-feira, 25 de julho de 2014

O que a psicanálise ensina sobre o amor

Na falta de inspiração maior para o blog, reproduzo aqui um trecho de uma entrevista interessante do psicanalista Jacques Allain Miller. No trecho em questão, ele discorre sobre a característica feminina do amor:


Psychologies: “Ser completo sozinho”: só um homem pode acreditar nisso…
Jacques-Alain Miller: Acertou! “Amar, dizia Lacan, é dar o que não se tem”. O que quer dizer: amar é reconhecer sua falta e doá-la ao outro, colocá-la no outro. Não é dar o que se possui, os bens, os presentes: é dar algo que não se possui, que vai além de si mesmo. Para isso, é preciso se assegurar de sua falta, de sua “castração”, como dizia Freud. E isso é essencialmente feminino. Só se ama verdadeiramente a partir de uma posição feminina. Amar feminiza. É por isso que o amor é sempre um pouco cômico em um homem. Porém, se ele se deixa intimidar pelo ridículo, é que, na realidade, não está seguro de sua virilidade.
 Psychologies: Amar seria mais difícil para os homens?
Jacques-Alain Miller: Ah, sim! Mesmo um homem enamorado tem retornos de orgulho, assaltos de agressividade contra o objeto de seu amor, porque esse amor o coloca na posição de incompletude, de dependência. É por isso que pode desejar as mulheres que não ama, a fim de reencontrar a posição viril que coloca em suspensão quando ama. Esse princípio Freud denominou a “degradação da vida amorosa” no homem: a cisão do amor e do desejo sexual.
 Psychologies: E nas mulheres?
Jacques-Alain Miller: É menos habitual. No caso mais freqüente há desdobramento do parceiro masculino. De um lado, está o amante que as faz gozar e que elas desejam, porém, há também o homem do amor, feminizado, funcionalmente castrado. Entretanto, não é a anatomia que comanda: existem as mulheres que adotam uma posição masculina. E cada vez mais. Um homem para o amor, em casa; e homens para o gozo, encontrados na Internet, na rua, no trem…
 Psychologies: Por que “cada vez mais”?
Jacques-Alain Miller: Os estereótipos socioculturais da feminilidade e da virilidade estão em plena mutação. Os homens são convidados a acolher suas emoções, a amar, a se feminizar; as mulheres, elas, conhecem ao contrário um certo “empuxo-ao-homem”: em nome da igualdade jurídica são conduzidas a repetir “eu também”. Ao mesmo tempo, os homossexuais reivindicam os direitos e os símbolos dos héteros, como casamento e filiação. Donde uma grande instabilidade dos papéis, uma fluidez generalizada do teatro do amor, que contrasta com a fixidez de antigamente. O amor se torna “líquido”, constata o sociólogo Zygmunt Bauman. Cada um é levado a inventar seu próprio “estilo de vida” e a assumir seu modo de gozar e de amar. Os cenários tradicionais caem em lento desuso. A pressão social para neles se conformar não desapareceu, mas está em baixa.

Entrevista com Jacques-Alain Miller, publicada na Psychologies Magazine de outubro 2008 (n° 278).

quinta-feira, 8 de maio de 2014

Maio

Há um céu muito azul em Maio. E um ar gelado. Outono, quase virando inverno. Um ano quase chegando ao meio. Mês das mães, mês das noivas, mês da maior parte dos taurinos e de um tantinho de geminianos. Mês em que nasci.



Quando criança, Maio era um mês bom para fazer aniversário, pois o Carnaval tinha passado e ainda as férias de Julho estavam longe. Não era Outubro que tinha o dia das crianças, nem Dezembro que tinha o Natal. O maior sofrimento era o medo de tomar ovada na saída e do famigerado "com quem será" depois dos parabéns. Mas aí o tempo passa e as angústias são outras, bem diferentes.

Uma vez, perguntaram ao ator Paulo Autran, numa dessas entrevistas bestas da vida, como era, afinal fazer 80 anos. "Eu não sei, ele disse". E acrescentou que, internamente, era o mesmo homem, apesar das dificuldades físicas consequentes da idade. E, de fato, é isso mesmo. Como é fazer trinta anos? Como é fazer quarenta? Trata-se de uma experiência subjetiva. Quando completei vinte e cinco anos, entrei em crise porque estava fazendo "um quarto de século". Uma bobagem sem tamanho abandonada aos trinta, que adorei completar, com muita festa. 

Penso que em muitas coisas mudamos ao longo do tempo (ainda bem) mas tantas outras permanecem. O gosto musical pode melhorar, o paladar apurar, mas estão lá aquele senso de humor característico, uma certa doçura, o hábito de passar talco depois do banho, de tomar água ao acordar. O que dá, de fato, a noção de realidade do passar dos anos é o primeiro "senhora" (ou senhor) que ouvimos no supermercado, a pouca tolerância com festas de república (ainda mais se forem no vizinho), a ressaca que dura uma semana depois de uma noitada, a gíria datada, a memória que já conta décadas, os filhos dos amigos (ou os seus) que estão maiores que você e a lembrança de que sua dissertação de mestrado foi gravada em disquete.

Outra índice da passagem do tempo são as perdas. Perda do viço da pele, perda de cabelo, de amigos, de amores, dos pais. Lembro-me daquele personagem, o Benjamim Button que, aparentemente tem a benção de rejuvenescer ao invés de envelhecer com os anos. A aparente benção não o impede de perder as pessoas que ama. Disso, não nos livramos, a não ser que a morte nos apanhe cedo.

O bom da passagem do tempo é que, se perdemos juventude, também podemos perder encanações bestas. As perdas ao longo da vida ajudam a perceber o que é, de fato, importante. Algumas dores vão embora.  Com outras tantas, aprendemos a lidar melhor. Que este mês de Maio possa trazer boas surpresas de aniversário. E que comemorar o novo ano seja, de fato, uma festa.


sábado, 19 de abril de 2014

Sobre likes, bloqueios e afins

Fala-se tanto, sempre, sobre tantas coisas, muitas vezes sem dizer uma palavra. Na prática clínica, nós, psicólogos, observamos isso o tempo todo. O cliente fala quando, mesmo após ter ido embora há horas, deixa seu perfume doce e forte permanecer na sala. Também fala algo quando demora a pagar pela sessão ou então faz questão de pagar adiantado. Fala quando há um cuidado excessivo para não sujar o divã com os sapatos ou, ao contrário, quando  faz questão de sujar os móveis com os pés sujos de barro. Também fala-se muito com o silêncio, pura e simplesmente. Ou silencia-se com palavras. E isso tudo, é claro, não é observável apenas entre as quatro paredes de um consultório.
 
Em "A psicopatologia da vida cotidiana", uma obra prima de 1901, Sigmund Freud escreveu sobre os chistes, os lapsos e os atos falhos no dia a dia. Esquecer nomes próprios, trocar destinatários de cartas, nomes de cidades, o que isto quer dizer? O que se fala quando se esquece algo? Será que este algo é esquecido porque tinha pouca importância ou, ao contrário, porque era importante demais? Distração, falta de memória? Ou algo além?

Em tempos de relações virtuais ou por aplicativos de celular, fala-se através do bloqueio, da ocultação de horários, da exclusão de amizades, dos likes ou ausência de likes. Likes e exclusões "acidentais", inclusive. "Nunca bloqueie alguém no facebook, Letícia, é a pior sensação que existe" - aconselhou-me uma amiga, recém-bloqueada. "Me senti um lixo" - continuou ela. Também já fui e não me senti assim, pensei. Quem odeia, bloqueia ou quem ama, bloqueia? Eis a questão. Tudo isso configuram mistérios (ou nem tanto assim) sobre aquilo que não é "verbalizado" no mundo virtual. E, é claro, sobre as relações que acontecem fora dele.
 
O fato é que, seja no início do século XX ou agora, em pleno século XXI, nem tudo é tão óbvio quanto parece ser. Muitas vezes um relacionamento (familiar, amoroso, de amizade) precisa ser exaustivamente  falado, enfrentar intermináveis DRs para que algo, enfim, seja comunicado e resolvido. Em outras, a comunicação se dá por um clique, por um like, por um bloqueio, por um corte. Nenhuma palavra é necessária para sentir-se amado (a) ou para saber que não há nada mais ali. A psicanálise do tio Freud, veja só, ainda é atualíssima. Mesmo com facebook, whatsapp e derivados, ainda o que causa mais sofrimento na vida das pessoas são as falhas de comunicação e os desencontros acarretados por elas, como lá, no século passado. Qual seria, afinal, o  remédio que daria conta disso?
 
 

segunda-feira, 14 de abril de 2014

O choro, os lenços e a feira livre

"Moça, o que acontece aí dentro desta casa que todo mundo sai chorando?"- perguntou-me o funcionário da padaria, enquanto eu tomava meu santo café espresso. A casa em questão era o novo consultório onde trabalho. Como é comum em consultórios de psicanalistas, não constam placas na casa. Aos olhos de quem passa pela rua, é apenas uma casa como tantas outras. No entanto, para o rapaz que me indagava com curiosidade, não era. Aparentemente, as pessoas entravam bem e saíam chorando de lá.Que tipo de tortura, afinal, se passava naquele lugar?

 Em um consultório de psicoterapia (ou psicanálise), uma caixa de lenços é ítem fundamental. As poltronas podem ser fuleiras, a sala pode não ser lá aquelas coisas, mas silêncio e uma caixa de lenços não podem faltar. Alguns clientes chegam a olhar desconfiados para a pobre caixinha: "As pessoas choram aqui?". Logo se acostumam. Um bom psicoterapeuta, aliás, tem de estar atento aos lenços que acabam. Que venham as lágrimas, mas que sejam acolhidas.



Mas porque catzo as pessoas choram em análise? Ora, um processo psicanalítico não costuma ser algo fácil. Há pessoas que choram porque dói. Ou porque estão em um espaço protegido. Ou porque estão na presença do analista e este choro é endereçado a ele. Há inúmeros sentidos possíveis para as lágrimas que caem, enfim.

Como psicólogos também passam por análise (em algum momento ou em vários momentos da vida), também eu precisei da santa caixinha de lenços dia desses. Se para o analista (psicoterapeuta), a caixa de lenços é um instrumento de trabalho, para o paciente (analisante), os óculos escuros são fundamentais. O choro pode vir quando você menos esperar. E se o seu analista for lacaniano e resolver interromper a sessão justamente na hora do choro, ferrou. E foi justamente isso que aconteceu. Tive de tentar me recompor em segundos antes de sair na rua, mas o nariz vermelho e os olhos inchados denunciavam o crime. Nenhum cisco faria aquele estrago todo, pensei. Dane-se, psicólogos também choram.  E saí, corajosa, para a rua. O que eu não contava era que o que me esperava do lado de fora era uma barulhenta feira livre.

Enquanto eu atravessava a feira (era o único caminho possível), ouvia gracejos e carinhosos consolos dos feirantes, que me ofereciam, desde frutas frescas a imensos pastéis. O resultado foi que cheguei ao final da feira alimentada e com a alma leve, sentindo-me amada e linda. Conclusões do dia: 1) Consultórios de psicologia podem ser, de fato, um mistério para quem vê de fora; 2) Feiras livres podem ser um alento no "pós-sessão", inclusive tendo efeitos terapêuticos e 3) Existe, sim, amor em São Paulo, a cidade que tem me acolhido tão bem.

terça-feira, 8 de abril de 2014

Cortázar

" Lo que me gusta de tu cuerpo es el sexo
  lo que me gusta de tu sexo es la boca
  lo que me gusta de tu boca es la lingua
  lo que me gusta de tu lingua es la palabra."

(Julio Cortázar)

domingo, 6 de abril de 2014

O maior amor do mundo

No cinema, José Wilker será, com certeza, lembrado por seus papéis em "O homem da capa preta"(1985) e "Bye bye Brasil" (1980). No entanto, há um filme mais recente de Cacá Diegues, pouco citado, que é de uma tocante delicadeza. Em "O maior amor do mundo" (2006), ele é Antônio, um homem em busca de suas origens, lidando com o amor e a morte. É uma interpretação melancólica de Wilker, que merece ser vista. Sobre o tema do filme, Contardo Calligaris escreveu em sua coluna, em 2006. Um lindo artigo sobre o amor materno, que reproduzo, aqui, na íntegra.

O Maior Amor do Mundo"


Nossa capacidade de amar depende sempre do quanto e de como nós fomos amados
ASSISTI A "O Maior Amor do Mundo", o filme de Cacá Diegues que estreou na sexta-feira passada. Cacá Diegues é o grande cineasta naïf do cinema brasileiro. O que quer dizer naïf?
Pela definição do "Aurélio", naïf se diz da arte que é "desvinculada da tradição erudita convencional e de vanguarda, e que é espontânea e popularesca na forma sempre figurativa, valendo-se de cores vivas e simbologia ingênua". A definição é boa, mas precisa de dois acréscimos: 1-) a palavra "ingênuo" vem do latim e designa, antes de mais nada, quem nasceu livre, sem servidão nem escravidão; 2-) há mais um traço crucial da arte naïf: um amor à "vida como ela é", graças ao qual narrar é uma alegria, mesmo quando a história é dramática ou triste.
Esses acréscimos são interligados: a liberdade (formal, retórica etc.) é fruto do prazer de contar, que, por sua vez, é fruto da paixão de viver.
Aparte. Quem quiser verificar (ou contestar) essa definição da arte naïf pode ver o acervo do Museu Internacional de Arte Naïf (mian@museunaif.com.br), no Rio de Janeiro, na r. Cosme Velho, 561, perto do trenzinho que leva ao Corcovado.
No último filme de Cacá Diegues, um astrofísico brasileiro americanizado acaba amando uma moça (talvez duas) da Baixada Fluminense. Ele vai e vem entre um hotel de luxo e um esgoto a céu aberto. Mas o filme não transmite uma mensagem sociológica sobre os encontros e desencontros entre classes. Tampouco é uma denúncia do estado tétrico de nossas periferias.
O filme é livre dessas "obrigações" porque é animado pela vontade de contar a vida, com aquelas misérias e grandezas que são, por assim dizer, interclassistas. Os fracassos e os sucessos do amor, a nostalgia, o peso da morte iminente, o anseio por um sentido são afetos que decidem as cores de nossa existência em qualquer cenário.
É difícil falar de "O Maior Amor do Mundo" sem estragar o prazer de quem ainda não assistiu ao filme. Posso propor alguns comentários, deixando a cada um a tarefa de relacioná-los com a história, quando ela se desvendar.
O filme me comoveu porque toca numa verdade que todos sabemos comprovar, a cada dia: nossa capacidade de amar (uma parceira ou um parceiro, os filhos que tivemos ou gostaríamos de ter, o próximo em geral) depende sempre do quanto e de como fomos amados.
Um filho pode ser, para um dos pais, o lembrete da derrota do Brasil no jogo fatídico contra o Uruguai, na Copa de 50, ou, pior, o símbolo da perda irreparável de um outro ser amado. Em certas condições, um filho pode também ser, para um dos pais, o resultado da infidelidade do outro. Não há carinho que adiante: para o filho, o lugar que ele ocupou na história dos pais é sempre um fardo decisivo.
Outro aparte. Hoje, a lei admite o aborto para salvar a vida da mãe: é para não condenar quem nasce a ser o representante da morte de sua própria mãe e, para o pai, o monstro que matou a mulher que ele amava. A lei também admite o aborto em caso de gravidez decorrente de estupro: é para não condenar quem nasce a ser, aos olhos da mãe, o representante da violência que ela sofreu. Que a gente concorde ou não, o que importa é que o legislador, nesses casos, não se preocupa com os pais, mas com o próprio destino do nascituro.
Voltando ao filme: Antônio, que não pôde ser amado na infância (por razões que o espectador descobrirá), não sabe amar ninguém. Na iminência da morte, ele sai à procura da única pessoa que talvez o tivesse amado (sua mãe biológica). É uma procura de alto risco, pois, salvo revelações (o filme tem algumas em reserva), a mãe biológica é, em princípio, quem abandonou seu filho.
A beleza da história contada por Cacá Diegues é que Antônio não procura o amor que não teve como uma consolação no fim de sua vida. Ele procura porque, quem sabe, ainda dê tempo para aprender a amar (uma mulher ou o filho que, até então, era impossível que ele tivesse). O maior amor do mundo é provavelmente o amor materno; não porque uma mãe amaria mais do que um pai, um companheiro ou uma companheira, mas porque o amor da mãe é o amor que melhor pode nos ensinar a amar.
O filme é uma parábola, livre e alegre, sobre essa verdade. Em prêmio, uma sugestão: talvez a vida encontre seu sentido como um aprendizado do amor -aprendizado que pode ser longo ou repentino, da última hora.

quarta-feira, 2 de abril de 2014

O Amor, Meu Amor

Nosso amor é impuro
como impura é a luz e a água
e tudo quanto nasce
e vive além do tempo.

Minhas pernas são água,
as tuas são luz
e dão a volta ao universo
quando se enlaçam
até se tornarem deserto e escuro.
E eu sofro de te abraçar
depois de te abraçar para não sofrer.

E toco-te
para deixares de ter corpo
e o meu corpo nasce
quando se extingue no teu.

E respiro em ti
para me sufocar
e espreito em tua claridade
para me cegar,
meu Sol vertido em Lua,
minha noite alvorecida.

Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.

Pudesse eu ser tu
E em tua saudade ser a minha própria espera.

Mas eu deito-me em teu leito
Quando apenas queria dormir em ti.

E sonho-te
Quando ansiava ser um sonho teu.

E levito, voo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar.

Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar.

Mia Couto, in "idades cidades divindades"


quinta-feira, 20 de março de 2014

PSI

De autoria de Contardo Calligaris, estréia, neste domingo, dia 23/03, PSI, a nova série da HBO. Acho interessante que o personagem principal seja um psicanalista, como o autor. A julgar pela divulgação, Carlo Antonini (Emílio de Melo) é bem mais bem humorado e irônico que Theo, o protagonista da já consagrada série "Sessão de Terapia". Espero que seja mais "bem resolvido", porque o Theo de ZéCarlos Machado era por demais atormentado. Confesso que Theo despertava em mim uma imensa vontade de "dar umas sacudidas". Estou torcendo por Carlo. E por uma mulher psicanalista como personagem da próxima série, o que daria um caldo bom também.





terça-feira, 11 de março de 2014

Mulher tem que.

"Isso é coisa de vagabunda. Mulher que se dá o respeito não anda assim. Não faz isso. Não bebe, não anda pela rua com homem. Mulher que se dá o respeito não fala assim. É feio. É sujo. Mulher não pode ser suja, mulher tem que ser delicada, tem que ser comportada. Mas sensual. Mas não muito. Tem que saber fazer o jogo do esconde-revela. Tem que saber seduzir, a mulher. As que são lindas é só ser mesmo, né? Não precisa exagerar com salto e maquiagem, salto e muita maquiagem deixa a mulher vulgar, homem nenhum vai querer mulher assim ao seu lado, só pra usar e jogar fora. E as gordinhas, até elas têm vez, é claro que tem lugar pra todos nesse mundo, tem quem goste das gordinhas, tem quem goste de tudo, mas tem que se cuidar, gordona também não pode. Mulher tem que se cuidar. Mulher tem que. Mulher tem que se vestir bem, tem que se cuidar. Mulher tem que. Tem que. Tem que. Mulher não pode. Mulher tem que. Depois reclamam, né. Saem assim, andam por aí e depois reclamam quando acontece alguma coisa. O mundo não vai mudar porque vocês querem, o mundo é assim, mulher tem que se cuidar, se resguardar. Depois que a mulher pega fama, já sabe. Depois não reclama. Fazem o que fazem, vão pra rua mostrar os peitos, querem topiléssi na praia e depois reclamam. Não pode. Assim vocês não conseguem nada. Não pode, mulher não pode. Ensinam as filhas assim, depois reclamam quando aparecem grávidas, depois querem abortar, depois reclamam que os pais fogem. Fazem o que fazem e ainda querem arrumar marido. Assim ninguém respeita. Mulher tem que se cuidar. É só a mulher se cuidar que fica tudo bem. Mulher que se cuida, que fica em casa, que não sai por aí, vai acontecer o que? Mulher tem que se dar o respeito. Quer ser livre? Aguenta. Mulher que se respeita sabe que liberdade não é tudo isso. Liberdade, isso aí é papo de vagabunda, de feminista que quer estragar as mulheres. Estava tudo muito bem com as mulheres em seu lugar, até que veio uma querendo revolução e olha aí. Se tivessem homem pra proteger, não estavam querendo liberdade nenhuma. Mulher que se dá o respeito não quer liberdade. Liberdade é coisa de vagabunda."

(Clara Averbuck)

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Trapaça

Lembram-se daqueles álbuns de família antigos, do casamento dos seus pais, do batizado da irmã mais velha ou mesmo dos seus aniversários? Pois é. Eu tinha uma tese de que era impossível qualquer homem ficar atraente em vestimentas dos anos 70, vide aquelas fotinhos medonhas. E não é porque seu tio era feio com aquele bigode de Charles Bronson. É porque nem Elvis Presley ficava bonito de costeletas enormes e casacos de veludo.Eu comprovei esta minha tese assistindo "Trapaça"(David O. Russel), um dos filmes preferidos a ganhar o Oscar no próximo domingo. A reconstituição de época é maravilhosa, mas os galãs Christian Bale e Bradley Cooper estão simplesmente medonhos. Sim, amigos, conseguiram esta proeza com Bradley Cooper. Em compensação, as "meninas" mandam no filme. Amy Adams e Jennifer Lawrence arrasam no figurino e na interpretação.E os personagens femininos são uma delícia (sim, cabe aqui um duplo sentido). O filme vale especialmente por elas, pela trilha sonora e pela viagem no tempo. 

O grande elenco de "Trapaça". Meninas superpoderosas em seus peitos sem silicone


Os quatro atores principais (Jennifer Lawrence, Bradley Cooper, Christian Bale e Amy Adams) concorrem à estatueta cobiçada. O forte do filme, de fato, é a composição dos personagens e a direção de atores. Não há vilões, nem mocinhos no longa. E ninguém é o que diz ser. O maior trunfo do enredo, mais do que falar de um grande trambiqueiro Irving (Bale) e sua comparsa Sidney (Amy Adams) é mostrar que quase todos os personagens são uma farsa. Nenhum, no entanto, é um grande perverso. Em algum momento, a farsa, em cada um, não se sustenta mais e algo passa a angustiar (seja um sentimento de culpa, um desejo avassalador ou uma rejeição). A pergunta é: até onde vai a imagem construída e até onde vai a verdade? Nesse sentido, há suspense até o fim. Um fim, confesso, que demora a chegar. "Trapaça" poderia ter meia hora a menos que não faria falta. Na minha modestíssima opinião, não é um filme para ganhar o Oscar. No entanto, Argo (2012) também não era e faturou no ano passado, também embalado por uma estética setentinha e uma excelente reconstituição de época.

Amy Adams e seus decotes...
me lembrou outra ruiva, Nadia Lippi, atriz que fez sucesso nos anos 70 e 80 no Brasil
 Recomendo "Trapaça" fortemente para os nostálgicos. É um bom filme. A cena em que Jennifer Lawrence dubla "Live and let die" enquanto faxina a cozinha vale por todas as quase três horas. Deu saudades daquela época em que todos os homens eram um misto de Emerson Fittipaldi e Agostinho Carrara. Eram horríveis, mas pelo menos não depilavam o peito. Dispenso as costeletas, mas que saudades eu tenho dos peitos cabeludos dos anos 70.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

A versão "cucaracha" de Avenida Brasil

Nesta semana,  "Avenida Brasil" (2012) estreou no México. A versão dublada em espanhol deixa tudo ainda mais dramático. A novela já é sucesso na Argentina. Saudades imensas de Carmem Lúcia (quer nome de vilã mais mexicano que este?).


quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Arquivo (não) confidencial

"Se Mark resolvesse fazer um filminho das minhas mensagens in box, seria um filme pornográfico". Foi assim que um amigo meu, um pândego, comentou o filme de pouco mais de um minuto que o Facebook ofereceu aos seus usuários no mês passado, por ocasião do aniversário de dez anos da rede social. Através de seus misteriosos algoritmos, o facebook selecionou fotos publicadas desde que o usuário entrou na rede (entre elas, as mais "curtidas", claro) e as embalou com um pianinho de chorar. Um agradinho ao narcisismo de cada um, sem dúvida. Não resisti e acessei o aplicativo Look Back (que produzia o vídeo), mas tive de concordar com meu amigo: talvez as mensagens in box (censuráveis, vergonhosas, piegas) estivessem mais relacionadas à trajetória do indivíduo no facebook do que propriamente o que foi publicado. Cheguei a ver filmes repletos de vasos de flores e outros cujos choramingos estavam entre as citações mais curtidas.

Meu filminho foi família.Será que me pareço uma boa moça? Papai, mamãe, sobrinho, irmãos. Muitos amigos queridos não apareceram. Há pessoas, inclusive, importantíssimas, que sequer tenho fotos, quanto mais publicadas.A sensação não foi propriamente de estranhamento, mas há realmente uma distância abissal (que surpresa!) entre o que se publica, o que é mais curtido e o que é, de fato, vivenciado. Meus textos mais queridos são sempre pouco curtidos. No entanto, se posto a foto de um sobrinho ou de um gatinho fofo (que estou sempre prestes a adotar), aí as curtidas vão para a estratosfera. Crianças, novos casais e bichos fofos são sempre os campeões de audiência.

O resultado é que muita gente reclamou e, no final das contas, houve a possibilidade do usuário editar o próprio vídeo. Que bom se a vida fosse assim. Essa pessoa eu recorto, deleto, apago. Esta outra eu trago de volta. Aquela conversa eu esqueço que existiu. Bora editar e colocar uma trilha sonora melhor? O fato é que Mark e seus colaboradores são geniais, sem dúvida. Os filminhos encheram o saco, mas viralizaram no aniversário do FACE, o que era o objetivo. No entanto, se nem palavras escritas (e faladas!) são capazes de dar conta de nossas vivências emocionais mais importantes ao longo de anos, quanto mais um vídeo baseado em algoritmos. O que se conclui é que os sujeitos por trás dos rostos sorridentes dos perfis do facebook ainda são inacessíveis (até para Mark), por mais expostos que estejam. Ainda bem.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

As canções

"Vou colecionar mais um soneto,
 Outro retrato em branco e preto
 A maltratar meu coração (...)"

Meu primeiro emprego como psicóloga foi em um CAPS, numa época bastante feliz e marcante. A coordenadora do serviço, em um dos meus primeiros dias, comunicou-me que eu poderia escolher uma atividade para coordenar junto aos usuários, além dos grupos que eu já participava e dos meus atendimentos individuais. Não seria um grupo psicoterapêutico, mas um espaço que eu teria junto com os pacientes para ouví-los um pouco, conhecê-los mais. Eu poderia escolher uma atividade como mediadora deste contato, sem, é claro, desempenhar a função da terapeuta ocupacional. Chegava a época do Natal e já havia oficinas de guirlandas e cartões. Não identificava em mim nenhuma habilidade especial, mas tive uma idéia. Propus que a cada encontro um dos pacientes escolhesse uma música que remetesse a um momento significativo da vida. Eu providenciaria a música e a letra; cantaríamos juntos e ouviríamos um pouco as estórias relacionadas àquela música. Na minha pouca experiência como psicóloga, acreditei que seria um grupo leve e descontraído, como deveria ser. Não era (e nem poderia) ser  um grupo psicoterapêutico. 

O grupo começou bem. O primeiro encontro foi muito alegre e a trilha sonora foi "Saudades da minha terra", uma canção sertaneja que traz a nostalgia de quem já morou no campo e agora morava na cidade. Era justamente a história da paciente, já com mais de cinquenta anos, que nos contou estórias da sua vida com o pai e irmãos. Rimos juntos, pacientes com história de vida semelhante trocaram idéias. Terminado o encontro, perguntei quem gostaria de escolher a música para o próximo. Outra paciente se manifestou e o cantor escolhido foi, nada mais, nada menos, que ele:


Aí, meus caros, a coisa ferrou. Robertão mexe com o imaginário brasileiro. Não é à toa que, em  todos os anos, pessoas de diversas idades choram ao vê-lo cantar. Letras simples, melodia fácil, muitas músicas que marcaram a vida de MUITA gente. Você pode até não gostar, mas o poder do homem é grande. A música escolhida foi "Como é grande o meu amor por você" e a atividade, até então, alegre, virou um espaço de catarse, a maioria das mulheres chorou, alguns pacientes saíram da sala, tudo muito, muito triste. Não havia (por um cuidado nosso) pacientes psicóticos no grupo, mas todos eles estavam bastante vulneráveis, obviamente. Menosprezei o efeito que a memória afetiva despertada pela música tivesse naquelas pessoas. O grupo não acabou, mas aquela experiência me marcou profundamente e contribuiu para que eu fosse mais cuidadosa no meu exercício profissional.

Não houve como não lembrar desses tempos ao assistir o belíssimo documentário de Eduardo Coutinho: "As canções".


Coutinho que tem, entre seus trabalhos, o delicioso "Edifício Master", fez um anúncio no Rio de Janeiro pedindo que voluntários comparecessem para cantar músicas que haviam, de alguma forma, marcado suas vidas. Houve bastante procura, entre pessoas muito jovens e idosas. Os melhores depoimentos, entremeados pelas canções, estão no documentário. Há estórias alegres e otimistas, mas algumas pessoas tiveram de interromper sua narrativa entre lágrimas. Muitos delas são tristes. Impressiona o número de canções do onipresente Roberto Carlos. E impressiona mais ainda o número de mulheres abandonadas. E, ao contrário do que possa parecer, essas mulheres não parecem melodramáticas ou até, digamos, chatas, com o drama vivido. É possível, mesmo nos casos aparentemente bizarros, identificar-se com elas e seus amores perdidos, às vezes há mais de quarenta anos.

Penso que o documentarista tem algo do psicanalista. A intervenção deve ser mínima e pontual. O cenário para os depoimentos não tinha como ser mais neutro: uma poltrona preta com uma cortina (preta) atrás. Nenhum instrumento acompanhava as canções. A vontade que tive foi de saber mais sobre cada uma daquelas pessoas, quis fazer perguntas. Certamente, se fosse a psicanalista ali, as faria. E, talvez, se Coutinho tivesse gravado este documentário há doze anos, eu pensaria mais de uma vez antes de fazer a fatídica (e por que não, bela?) "oficina de música". Nunca, jamais menospreze o poder de uma canção.

* este post foi publicado, originalmente, em Fevereiro de 2012. Publico novamente em homenagem a Eduardo Coutinho, um dos maiores cineastas que o Brasil já teve.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

O amor da vida


 "Você está sozinha porque não encontrou O HOMEM DA SUA VIDA", costumamos ouvir. Ah, o amor romântico, sempre a nos pregar peças. Como se existisse um único, como se existisse o "predestinado". A tampa da panela. A tal da alma gêmea, metade da laranja, sonho lindo de se ver. Embora exista, sim, é claro, aquela pessoa que resultou naquele ENCONTRO especial, sempre achei mais realista pensar em "homens da vida". Amores. O amor platônico adolescente. O primeiro de todos. O companheiraço. O fofo. O canalha que foi, na verdade, uma escola de malandragem e de vida. E o homem que, do mesmo jeito que surgiu, sumiu, mas que teve uma função importante: a de te fazer esquecer do canalha. Andei pensando muito nesta idéia do "amor único, o verdadeiro" ao ler um livro especialmente marcante neste final de 2013: "A casa das belas adormecidas", de Yasunari Kawabata. Nele, um homem de 67 anos relembra as mulheres que passaram por sua vida ao entrar em contato com moças jovens, adormecidas em sono profundo.




A casa das belas adormecidas é, na verdade, uma espécie de bordel que atende homens em idade avançada. Os homens deitam-se com as moças nuas, mas não é permitido que se tenha relações sexuais com elas.Todas estão profundamente adormecidas e os clientes são orientados a deixar os aposentos antes que elas despertem. Aos clientes, são oferecidas sempre moças diferentes a cada vez. Nunca é a mesma.

Eguchi, o protagonista do romance, vai, aos poucos, habituando-se às regras daquele estranho local. Não há diálogo possível com as moças. No entanto, elas dormem, sussurram, mexem-se na cama, mordem os lábios, falam coisas incompreensíveis sob efeito de algum forte sonífero. Algumas parecem mais jovens, quase meninas, com poucas curvas. Outras são mais opulentas, curvilíneas, com seios grandes. Nas associações de Eguchi, ele vai atribuindo sentidos aos sussurros das moças, ao cheiro exalado por elas, à textura da pele, à vida pregressa das mesmas. Nestas associações, ele também vai se lembrando de mulheres importantes de sua vida. Sua mulher, uma prostituta, as filhas, uma forte paixão. Assim sendo, os encontros extremamente sensoriais com as moças desconhecidas permitem a atualização de vivências passadas importantes.

O livro é de um erotismo comovente.Trata de temas como a velhice, a eminência da morte e a sexualidade com imensa delicadeza. O autor, provavelmente, não pensou em psicanálise quando o escreveu, mas o enredo do livro flerta com ela o tempo todo.A velha questão: a cada encontro, o que há, de fato, da pessoa que está lá, e o que há de nós mesmos ali? Eguchi não sabia nada de nenhuma das moças e, no entanto, as preenchia de todos os sentidos possíveis. E, tal como o velho Eguchi, também nós fazemos isso o tempo todo. Em algumas, damos o nome de amor.