sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Uma lembrança para chamar de minha

Descobriu Freud  que o inconsciente se abre por mancadas. É no tropeço que o formoso inconsciente dá o ar de suas graças, faz-se presente. Mesmo quem não é da área psi, já se viu enrubescendo por um ato falho, um lapso, um sonho esquisito (lembrado ou esquecido), um sintoma que faz doer o corpo, sem ser "doença". É justamente através destas formações do inconsciente que nos damos conta que há algo em nós que é desvairado e que obedece uma lógica (des?) conhecida. E que quando a gente menos espera, dá um jeito de se manifestar. No telefonema de madrugada, na imagem do sonho, na piada que escapa, nas relações amorosas, nos esquecimentos.

Hoje, em tempos de whatsapp, facebook e afins, há algo que manca por nós (além de nós). Há um corretor ortográfico que troca pai por pau e hoje por beijo sem a menor cerimônia. Elimina ao invés de iluminar. Agora, amora, alora. Não bastassem nossos próprios lapsos, ainda nos sugerem outros. Qual, afinal, foi nosso? Quando, afinal, foi "culpa" do corretor?

Já o  facebook com seus benditos (malditos?) algoritmos  ressuscita mortos e feridos, sugere amizades improváveis, entrega o que você fez no Carnaval passado, em compras e contatos. Também já há alguns meses, o mesmo facebook te diz o que lembrar. Sugere fotos que você "talvez" gostaria de rever. Traz postagens de 5, 4, 3 anos atrás. E aí você se dá conta que seu cotidiano é realmente banal, que você continua citando o Calligaris todas as quintas feiras e que, mesmo abominando música sertaneja, já citou "Evidências" por cinco vezes. Que teve gente, sim, que veio para ficar e que tem gente que foi para nunca mais. Dá-se conta das repetições, conscientes ou não, sem precisar deitar no divã. Dá-se conta que mesmo mudando o objeto de amor, lamenta-se de uma maneira muito parecida.

No entanto, interessante é perceber que se há algo que não se reconhece mais (eu escrevi mesmo isso? quem é essa pessoa, cruzes!),  há algo que volta de outra maneira e faz abrir um sorriso. Quem diria que aquele avatar ou mesmo aquela foto que causava tanta paixão e depois tanta dor, já pode despertar ternura?

Vivemos tempos em que é mais difícil esquecer, embora seja pedido, constantemente, que se esqueça. No entanto, ainda acho melhor dispensar ajuda. Não, redes sociais, não queiram direcionar minhas lembranças. Corretores ortográficos e recordações do facebook: saiam deste corpo que não lhes pertence. Que eu possa tropeçar com meus lapsos e chorar e rir com minhas memórias (ou ausência delas) sozinha. Já é bastante custoso assim.