segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

As canções

"Vou colecionar mais um soneto,
 Outro retrato em branco e preto
 A maltratar meu coração (...)"

Meu primeiro emprego como psicóloga foi em um CAPS, numa época bastante feliz e marcante. A coordenadora do serviço, em um dos meus primeiros dias, comunicou-me que eu poderia escolher uma atividade para coordenar junto aos usuários, além dos grupos que eu já participava e dos meus atendimentos individuais. Não seria um grupo psicoterapêutico, mas um espaço que eu teria junto com os pacientes para ouví-los um pouco, conhecê-los mais. Eu poderia escolher uma atividade como mediadora deste contato, sem, é claro, desempenhar a função da terapeuta ocupacional. Chegava a época do Natal e já havia oficinas de guirlandas e cartões. Não identificava em mim nenhuma habilidade especial, mas tive uma idéia. Propus que a cada encontro um dos pacientes escolhesse uma música que remetesse a um momento significativo da vida. Eu providenciaria a música e a letra; cantaríamos juntos e ouviríamos um pouco as estórias relacionadas àquela música. Na minha pouca experiência como psicóloga, acreditei que seria um grupo leve e descontraído, como deveria ser. Não era (e nem poderia) ser  um grupo psicoterapêutico. 

O grupo começou bem. O primeiro encontro foi muito alegre e a trilha sonora foi "Saudades da minha terra", uma canção sertaneja que traz a nostalgia de quem já morou no campo e agora morava na cidade. Era justamente a história da paciente, já com mais de cinquenta anos, que nos contou estórias da sua vida com o pai e irmãos. Rimos juntos, pacientes com história de vida semelhante trocaram idéias. Terminado o encontro, perguntei quem gostaria de escolher a música para o próximo. Outra paciente se manifestou e o cantor escolhido foi, nada mais, nada menos, que ele:


Aí, meus caros, a coisa ferrou. Robertão mexe com o imaginário brasileiro. Não é à toa que, em  todos os anos, pessoas de diversas idades choram ao vê-lo cantar. Letras simples, melodia fácil, muitas músicas que marcaram a vida de MUITA gente. Você pode até não gostar, mas o poder do homem é grande. A música escolhida foi "Como é grande o meu amor por você" e a atividade, até então, alegre, virou um espaço de catarse, a maioria das mulheres chorou, alguns pacientes saíram da sala, tudo muito, muito triste. Não havia (por um cuidado nosso) pacientes psicóticos no grupo, mas todos eles estavam bastante vulneráveis, obviamente. Menosprezei o efeito que a memória afetiva despertada pela música tivesse naquelas pessoas. O grupo não acabou, mas aquela experiência me marcou profundamente e contribuiu para que eu fosse mais cuidadosa no meu exercício profissional.

Não houve como não lembrar desses tempos ao assistir o belíssimo documentário de Eduardo Coutinho: "As canções".


Coutinho que tem, entre seus trabalhos, o delicioso "Edifício Master", fez um anúncio no Rio de Janeiro pedindo que voluntários comparecessem para cantar músicas que haviam, de alguma forma, marcado suas vidas. Houve bastante procura, entre pessoas muito jovens e idosas. Os melhores depoimentos, entremeados pelas canções, estão no documentário. Há estórias alegres e otimistas, mas algumas pessoas tiveram de interromper sua narrativa entre lágrimas. Muitos delas são tristes. Impressiona o número de canções do onipresente Roberto Carlos. E impressiona mais ainda o número de mulheres abandonadas. E, ao contrário do que possa parecer, essas mulheres não parecem melodramáticas ou até, digamos, chatas, com o drama vivido. É possível, mesmo nos casos aparentemente bizarros, identificar-se com elas e seus amores perdidos, às vezes há mais de quarenta anos.

Penso que o documentarista tem algo do psicanalista. A intervenção deve ser mínima e pontual. O cenário para os depoimentos não tinha como ser mais neutro: uma poltrona preta com uma cortina (preta) atrás. Nenhum instrumento acompanhava as canções. A vontade que tive foi de saber mais sobre cada uma daquelas pessoas, quis fazer perguntas. Certamente, se fosse a psicanalista ali, as faria. E, talvez, se Coutinho tivesse gravado este documentário há doze anos, eu pensaria mais de uma vez antes de fazer a fatídica (e por que não, bela?) "oficina de música". Nunca, jamais menospreze o poder de uma canção.

* este post foi publicado, originalmente, em Fevereiro de 2012. Publico novamente em homenagem a Eduardo Coutinho, um dos maiores cineastas que o Brasil já teve.

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