sexta-feira, 6 de novembro de 2015

Psi, a série


Contardo Calligaris, psiquiatra e psicanalista de origem italiana tornou-se, há vários anos, uma pessoa bastante conhecida para além das paredes do seu consultório. Além dos bons livros técnicos que escreveu, é colunista da Folha, escreveu romances  e se casou com uma atriz famosa (Mônica Torres). Ao buscar seu nome no google, encontramos, entre as buscas correlatas, o nome de Mônica, de seu ex, Marcello Antony e de Emílio de Melo, o ator que interpreta seu alter ego Carlo Antonini, em Psi, a série que entra em sua segunda temporada pelo canal HBO. Calligaris é criador e roteirista da obra televisiva. Na verdade, é curioso e revelador que não apareçam nomes de outros psicanalistas entre as buscas semelhantes à pesquisa pelo nome da Calligaris. Entre os colegas psi, dizem as más línguas que Calligaris é, hoje, melhor escritor e artista do que propriamente psicanalista. Alguns ex-pacientes teriam dito por aí, aliás, que Calligaris teria dificuldades na escuta  das mazelas de seus clientes. Se é verdade, fofoca, tesão mal resolvido ou pura intriga da oposição, eu não sei. No entanto, lembrei disso ao assistir as aventuras de Carlo, em Psi.

A fotografia da série é linda. A São Paulo de Carlo é glamourosa e tem um quê novaiorquino. As tomadas são amplas, tem muitas externas, diferente de "Sessão de Terapia" que era, propositalmente claustrofóbica. Carlo é um sujeito do mundo; é comum o personagem fazer referências às suas viagens ao redor do globo, tal como Calligaris em seus escritos.Comuns também são as citações de personagens da literatura e de informações de cultura geral. É um personagem sofisticado, mora em um apartamento com vista espetacular e tem um consultório de segurar o queixo(aliás, quando eu crescer, gostaria de ter um igual). Carlo, volta e meia, toma um bom vinho, viaja, circula nas altas rodas, assiste a desfiles de moda. Em alguns momentos, atende um cliente. Aliás, não é raro ele demonstrar um certo enfado com seus pacientes, apesar da curiosidade intelectual que cada caso (que ele acompanha ou não) lhe desperta. 

A discussão a respeito dos casos que Carlo encontra pela vida é bastante didática. Guardadas as liberdades poéticas, há um rigor teórico e técnico maior na explanação dos casos clínicos do que em "Sessão de Terapia", por exemplo. Percebe-se um cuidado maior com as palavras. Carlo é um psicanalista lacaniano, como Calligaris, e é fiel nas citações. O episódio em que ele atende um paciente extremamente sedutor cuja estrutura de personalidade é interrogada, há uma aula sobre como diferenciar um "não neurótico" de um "perverso", o que é bastante interessante para o público em geral e para os profissionais psis também. A personagem de Valentina, a colega psicanalista de Carlo, interpretada por Claudia Ohana faz uma boa dobradinha com o protagonista.

Em resumo: gostei da série. Alguns episódios são infinitivamente melhores que outros, mas os que assisti são muito bons. A comparação com "Sessão de Terapia" é inevitável, mas são propostas muito diferentes.  Talvez Theo se angustiasse demais e Carlo, de menos, mas isso não compromete uma obra de ficção. Eles não são analistas de verdade, são personagens, afinal. O glamour e o "quê" aventureiro de Carlo fica bem longe do cotidiano sofrido de muitos psicanalistas, embora alguns sejam mais conhecidos, de fato, por estarem sempre presentes em colunas sociais. Se Carlo de fato se parece com Calligaris e em quê, só o próprio poderia responder. Em uma determinada entrevista bastante divulgada em redes sociais, Calligaris disse: "Não quero ser feliz, quero é ter uma vida interessante". Isso, Carlo, sem dúvida, tem.

P.S: Neste ano, o curso de Psicologia da USP está entre os mais concorridos da FUVEST, perdendo apenas para Medicina, unidade de Ribeirão Preto. É um fenômeno interessante, que faz pensar se todas essas obras de ficção que abordam o universo psi tem algo a ver com isso. Seria uma busca por uma profissão que, enfim, enfrenta menos preconceitos, ou uma busca inconsciente por ajuda? Mais gente sofrendo ou mais gente disposta a escutar? Ou os dois? Taí um bom assunto para refletir.

P.S 2: Calligaris fala de Carlo e responde sobre o que eles têm em comum aqui:

http://revistatrip.uol.com.br/trip-tv/contardo-calligaris-comenta-sobre-ter-um-alter-ego-na-serie-psi.html

sexta-feira, 2 de outubro de 2015

Uma lembrança para chamar de minha

Descobriu Freud  que o inconsciente se abre por mancadas. É no tropeço que o formoso inconsciente dá o ar de suas graças, faz-se presente. Mesmo quem não é da área psi, já se viu enrubescendo por um ato falho, um lapso, um sonho esquisito (lembrado ou esquecido), um sintoma que faz doer o corpo, sem ser "doença". É justamente através destas formações do inconsciente que nos damos conta que há algo em nós que é desvairado e que obedece uma lógica (des?) conhecida. E que quando a gente menos espera, dá um jeito de se manifestar. No telefonema de madrugada, na imagem do sonho, na piada que escapa, nas relações amorosas, nos esquecimentos.

Hoje, em tempos de whatsapp, facebook e afins, há algo que manca por nós (além de nós). Há um corretor ortográfico que troca pai por pau e hoje por beijo sem a menor cerimônia. Elimina ao invés de iluminar. Agora, amora, alora. Não bastassem nossos próprios lapsos, ainda nos sugerem outros. Qual, afinal, foi nosso? Quando, afinal, foi "culpa" do corretor?

Já o  facebook com seus benditos (malditos?) algoritmos  ressuscita mortos e feridos, sugere amizades improváveis, entrega o que você fez no Carnaval passado, em compras e contatos. Também já há alguns meses, o mesmo facebook te diz o que lembrar. Sugere fotos que você "talvez" gostaria de rever. Traz postagens de 5, 4, 3 anos atrás. E aí você se dá conta que seu cotidiano é realmente banal, que você continua citando o Calligaris todas as quintas feiras e que, mesmo abominando música sertaneja, já citou "Evidências" por cinco vezes. Que teve gente, sim, que veio para ficar e que tem gente que foi para nunca mais. Dá-se conta das repetições, conscientes ou não, sem precisar deitar no divã. Dá-se conta que mesmo mudando o objeto de amor, lamenta-se de uma maneira muito parecida.

No entanto, interessante é perceber que se há algo que não se reconhece mais (eu escrevi mesmo isso? quem é essa pessoa, cruzes!),  há algo que volta de outra maneira e faz abrir um sorriso. Quem diria que aquele avatar ou mesmo aquela foto que causava tanta paixão e depois tanta dor, já pode despertar ternura?

Vivemos tempos em que é mais difícil esquecer, embora seja pedido, constantemente, que se esqueça. No entanto, ainda acho melhor dispensar ajuda. Não, redes sociais, não queiram direcionar minhas lembranças. Corretores ortográficos e recordações do facebook: saiam deste corpo que não lhes pertence. Que eu possa tropeçar com meus lapsos e chorar e rir com minhas memórias (ou ausência delas) sozinha. Já é bastante custoso assim.

quinta-feira, 17 de setembro de 2015

Qual é a regra do jogo?


"Brasileiro quer inventar moda de fazer novela como se faz os seriados americanos. Não adianta. Não rola". Escutei isso de um amigo, ao conversarmos sobre a nova das nove, "A regra do jogo", novela que ainda não emplacou (pelo menos em audiência e no twitter). "Novela brasileira tem que ter mocinho-mocinho, vilã-vilão, senão o povo se confunde, não tem para quem torcer", concluiu ele. Na ocasião, fiquei em dúvida se concordava ou não com a tese.

João Emanuel Carneiro, o autor de "A Regra do Jogo", ficou mais conhecido depois do fenômeno de três anos atrás "Avenida Brasil". Novela, aliás, que diziam ter sido inspirada especialmente em "Revenge", série americana que perdeu fôlego logo, embora tenha ficado no ar até Maio deste ano. "Revenge" é uma série mais operística, com ares de novelão mexicano, com uma construção de personagens  bem distante da complexidade de outras séries como Breaking Bad, Mad Men ou Sopranos. O que aproximava a Nina de Débora Falabella da Emily de Amanda Clarke era o mote: Vingança. Mas foi só.

"Avenida Brasil" trouxe duas protagonistas femininas fortes: Nina e Carminha. Embora, à priori, Nina fosse a mocinha e Carminha, a vilã, ambas tinham nuances de caráter. No entanto, Nina foi apresentada ao público como uma garotinha, na primeira fase da novela, abandonada à própria sorte pela madrasta má. E em um lixão. O público, embora tenha amado  Carminha, sabia para quem torcer.

Em 2008, em "A Favorita", o telespectador ainda não sabia quem era a mocinha uns bons capítulos após a novela ter começado. Quem era a vilã? Flora ou Donatela? A revelação, que viria apenas na metade da trama, teve de vir antes, pois a novela perdia audiência. A vilã, para surpresa de muitos era a angelical e pobre Flora (Patrícia Pillar) e não a rica perua Donatela (Cláudia Raia). Flora, de fato, tinha sido presa por ser uma assassina perigosa e não por injustiça. O público, então, tornou-se cúmplice de Donatela, embora o elenco todo fosse enganado por Flora. A novela foi um sucesso. Flora era uma vilã ainda pior que Carminha, pois não gostava da filha, Lara. Carminha, ao menos, amava Jorginho, o filho adotivo (embora espezinhasse Ágata, a filha gordinha).

Em "A Favorita", um ator chamou a atenção em um papel pequeno. Era Alexandre Nero, como o verdureiro Vanderlei. Com um olhar doce, ele era apaixonado por uma mulher casada que era agredida pelo marido, Catarina (Lília Cabral). Alguns anos e um Comendador depois, Nero faz agora o protagonista de "A Regra do Jogo": Romero Rômulo. Da série de personagens principais fortes e ambíguos de João Emanuel Carneiro, surge, agora um homem. As anteriores eram personagens femininas.

Nero tem o "physique du role" para Romero Rômulo. Embora não haja resquícios do Comendador em Romero, está lá o tal charme cafajeste que, claro, deve ser do ator. Nero é um homem comum, tem cabelos grisalhos, olhos muito grandes e facilmente fica acima do peso, mas é irresistível. Faz bem tanto as cenas cômicas como as dramáticas (aquelas dele com Cássia Kis dá vontade de bater palma sozinha na sala). No entanto, a ambiguidade dele é tanta que fica difícil de torcer por ele, ainda é confuso. Está ainda longe de ser um Walter White ou qualquer desses inúmeros anti-heróis fascinantes das séries americanas. O texto é bom, o ator é bom, mas falta. Nesse sentido, o Comendador de Império foi um personagem para lá de bem construído, um anti-herói dos bons, que o público adotou e amou. Não gosto do texto de Aguinaldo Silva, mas tenho de dar a mão à palmatória.

Enfim, tenho de discordar do meu amigo. O público noveleiro até compra os anti-heróis (houve tantos outros), mas tudo depende de como a história é contada para a galera embarcar junto com ele. Qual é a motivação do cara? Arrisco que o grande público não gosta de ser enganado e demasiadamente surpreendido. Quanto a mim, digo que o ritmo de trama policial da novela me cansa. Muito diálogo, muito estímulo, câmera escondida, o escambau. Tiro, porrada e bomba. Acho que estou trabalhando demais e queria um refresco à noite. Ou estou ficando velha mesmo. Uma "tia do sofá".


OBS1 : João Emanuel Carneiro já escreveu um personagem masculino forte, uma espécie de Macunaíma em "Cobras e Lagartos":  o Foguinho, de Lázaro Ramos. No entanto, Foguinho foi um personagem cômico, em uma novela das sete, antes de JEC migrar para o horário nobre.

OBS2: Um anti-herói de novela das oito que gostei muito foi o Renato Villar, de Tarcísio Meira em "Roda de Fogo" (1986). O empresário frio e calculista vai se transformando ao longo da trama por conta de problemas de saúde, um aneurisma cerebral. Lauro César Muniz é um autor conhecido por construir excelentes personagens masculinos que vão se transformando ao longo da trama: Antônio Dias (de "Escalada"), o próprio Renato Villar e o inesquecível Sassá Mutema (de "O Salvador da Pátria"). Romero Rômulo, como Renato Villar, também tem uma doença crônica (a esclerose múltipla) que muito provavelmente terá papel fundamental nos rumos do personagem.

OBS3: Ah, em 2012, escrevi sobre Avenida Brasil aqui.

quinta-feira, 3 de setembro de 2015

Pedaço de Nada

“O que você quer ser quando crescer?” perguntavam ao pequeno, como os adultos que querem conversar com as crianças, mas não sabem como, perguntam a todas as crianças.
“Astronauta”, “cabeleireiro”, “piloto de fórmula um”, “médico”, “não quero crescer”, os meninos comuns respondiam.
Mas ele, que só queria ser comum, dizia “nada”, sendo diferente.
Cresceu, fez uma coisa e outra, mais uma coisa aqui e outra acolá, nada de mais, deu certo em algumas coisas e em tantas outras falhou, estava tudo bem. Ele era mais ou menos em tudo, não chamava muito a atenção em nada e aquilo era ótimo pra ele. Gostava de se sentir livre e só se sentia livre quando não despertava o olhar das outras pessoas.
Ficava com uma moça aqui, outra ali, nada de muito sério. Se de repente a moça começava a se interessar de um modo especial por ele, então ele rapidamente “sumia”, como elas diziam. Se afastava mesmo, o interesse dos outros por ele lhe era tão claustrofóbico quanto crise de síndrome de pânico em ônibus lotado em horário de pico. Por isso ele não tinha facebook, nem twitter, nem instagram, nem rede social alguma, lhe bastava o whatsapp para conversar reservadamente.
Num encontro casual, onde ele pretendia apenas mais uma relaçãozinha bem comum, um pedaço do nada dele pulou numa parte dela que ele não conseguia dizer qual era, ou ver qual era, ou sentir qual era. Ao ponto de duvidar da sanidade mental dele. Ao ponto de duvidar da existência dela. Ao ponto de cogitar, por três centésimos de segundos que ela fosse um extraterrestre querendo algo dele para levar ao planeta de origem dela. Ao ponto de, em seguida a esse pensamento, perceber que ele só podia achar que o nada dele era algo muito incrível ao ponto de lhe passar pela cabeça, ainda que fantasiosamente, que extraterrestres o quisessem. Ao ponto de entender, então, que não é que ele queria ser nada, mas é que ele se achava tão interessante, que tinha medo de que as pessoas pudessem roubar algo dele. Ao ponto de se apaixonar por aquela que tinha roubado um pedacinho do nada dele.
Mas porque confundiu amor com angústia (afinal, qual é mesmo a diferença?), se afastou dela ainda mais energicamente do que se afastava das outras.

( Lindo texto de Ana Suy Sesarino Kuss, publicado originalmente (aqui)

terça-feira, 16 de junho de 2015

Tatuagem

Quero ficar no seu corpo feito tatuagem
Que é pra te dar coragem
Pra seguir viagem
Quando a noite vem...
(...)
Quero brincar no teu corpo
Feito bailarina
Que logo te alucina
Salta e se ilumina
Quando a noite vem...

(Chico Buarque, decifrando meus desejos)

terça-feira, 14 de abril de 2015

Sobre o silêncio...

"Solo los tontos creen que el silencio es um vacío. No está vacío nunca. Y a veces la mejor manera de comunicarse es callando"

Eduardo Galeano