quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Trapaça

Lembram-se daqueles álbuns de família antigos, do casamento dos seus pais, do batizado da irmã mais velha ou mesmo dos seus aniversários? Pois é. Eu tinha uma tese de que era impossível qualquer homem ficar atraente em vestimentas dos anos 70, vide aquelas fotinhos medonhas. E não é porque seu tio era feio com aquele bigode de Charles Bronson. É porque nem Elvis Presley ficava bonito de costeletas enormes e casacos de veludo.Eu comprovei esta minha tese assistindo "Trapaça"(David O. Russel), um dos filmes preferidos a ganhar o Oscar no próximo domingo. A reconstituição de época é maravilhosa, mas os galãs Christian Bale e Bradley Cooper estão simplesmente medonhos. Sim, amigos, conseguiram esta proeza com Bradley Cooper. Em compensação, as "meninas" mandam no filme. Amy Adams e Jennifer Lawrence arrasam no figurino e na interpretação.E os personagens femininos são uma delícia (sim, cabe aqui um duplo sentido). O filme vale especialmente por elas, pela trilha sonora e pela viagem no tempo. 

O grande elenco de "Trapaça". Meninas superpoderosas em seus peitos sem silicone


Os quatro atores principais (Jennifer Lawrence, Bradley Cooper, Christian Bale e Amy Adams) concorrem à estatueta cobiçada. O forte do filme, de fato, é a composição dos personagens e a direção de atores. Não há vilões, nem mocinhos no longa. E ninguém é o que diz ser. O maior trunfo do enredo, mais do que falar de um grande trambiqueiro Irving (Bale) e sua comparsa Sidney (Amy Adams) é mostrar que quase todos os personagens são uma farsa. Nenhum, no entanto, é um grande perverso. Em algum momento, a farsa, em cada um, não se sustenta mais e algo passa a angustiar (seja um sentimento de culpa, um desejo avassalador ou uma rejeição). A pergunta é: até onde vai a imagem construída e até onde vai a verdade? Nesse sentido, há suspense até o fim. Um fim, confesso, que demora a chegar. "Trapaça" poderia ter meia hora a menos que não faria falta. Na minha modestíssima opinião, não é um filme para ganhar o Oscar. No entanto, Argo (2012) também não era e faturou no ano passado, também embalado por uma estética setentinha e uma excelente reconstituição de época.

Amy Adams e seus decotes...
me lembrou outra ruiva, Nadia Lippi, atriz que fez sucesso nos anos 70 e 80 no Brasil
 Recomendo "Trapaça" fortemente para os nostálgicos. É um bom filme. A cena em que Jennifer Lawrence dubla "Live and let die" enquanto faxina a cozinha vale por todas as quase três horas. Deu saudades daquela época em que todos os homens eram um misto de Emerson Fittipaldi e Agostinho Carrara. Eram horríveis, mas pelo menos não depilavam o peito. Dispenso as costeletas, mas que saudades eu tenho dos peitos cabeludos dos anos 70.

domingo, 23 de fevereiro de 2014

A versão "cucaracha" de Avenida Brasil

Nesta semana,  "Avenida Brasil" (2012) estreou no México. A versão dublada em espanhol deixa tudo ainda mais dramático. A novela já é sucesso na Argentina. Saudades imensas de Carmem Lúcia (quer nome de vilã mais mexicano que este?).


quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Arquivo (não) confidencial

"Se Mark resolvesse fazer um filminho das minhas mensagens in box, seria um filme pornográfico". Foi assim que um amigo meu, um pândego, comentou o filme de pouco mais de um minuto que o Facebook ofereceu aos seus usuários no mês passado, por ocasião do aniversário de dez anos da rede social. Através de seus misteriosos algoritmos, o facebook selecionou fotos publicadas desde que o usuário entrou na rede (entre elas, as mais "curtidas", claro) e as embalou com um pianinho de chorar. Um agradinho ao narcisismo de cada um, sem dúvida. Não resisti e acessei o aplicativo Look Back (que produzia o vídeo), mas tive de concordar com meu amigo: talvez as mensagens in box (censuráveis, vergonhosas, piegas) estivessem mais relacionadas à trajetória do indivíduo no facebook do que propriamente o que foi publicado. Cheguei a ver filmes repletos de vasos de flores e outros cujos choramingos estavam entre as citações mais curtidas.

Meu filminho foi família.Será que me pareço uma boa moça? Papai, mamãe, sobrinho, irmãos. Muitos amigos queridos não apareceram. Há pessoas, inclusive, importantíssimas, que sequer tenho fotos, quanto mais publicadas.A sensação não foi propriamente de estranhamento, mas há realmente uma distância abissal (que surpresa!) entre o que se publica, o que é mais curtido e o que é, de fato, vivenciado. Meus textos mais queridos são sempre pouco curtidos. No entanto, se posto a foto de um sobrinho ou de um gatinho fofo (que estou sempre prestes a adotar), aí as curtidas vão para a estratosfera. Crianças, novos casais e bichos fofos são sempre os campeões de audiência.

O resultado é que muita gente reclamou e, no final das contas, houve a possibilidade do usuário editar o próprio vídeo. Que bom se a vida fosse assim. Essa pessoa eu recorto, deleto, apago. Esta outra eu trago de volta. Aquela conversa eu esqueço que existiu. Bora editar e colocar uma trilha sonora melhor? O fato é que Mark e seus colaboradores são geniais, sem dúvida. Os filminhos encheram o saco, mas viralizaram no aniversário do FACE, o que era o objetivo. No entanto, se nem palavras escritas (e faladas!) são capazes de dar conta de nossas vivências emocionais mais importantes ao longo de anos, quanto mais um vídeo baseado em algoritmos. O que se conclui é que os sujeitos por trás dos rostos sorridentes dos perfis do facebook ainda são inacessíveis (até para Mark), por mais expostos que estejam. Ainda bem.

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014

As canções

"Vou colecionar mais um soneto,
 Outro retrato em branco e preto
 A maltratar meu coração (...)"

Meu primeiro emprego como psicóloga foi em um CAPS, numa época bastante feliz e marcante. A coordenadora do serviço, em um dos meus primeiros dias, comunicou-me que eu poderia escolher uma atividade para coordenar junto aos usuários, além dos grupos que eu já participava e dos meus atendimentos individuais. Não seria um grupo psicoterapêutico, mas um espaço que eu teria junto com os pacientes para ouví-los um pouco, conhecê-los mais. Eu poderia escolher uma atividade como mediadora deste contato, sem, é claro, desempenhar a função da terapeuta ocupacional. Chegava a época do Natal e já havia oficinas de guirlandas e cartões. Não identificava em mim nenhuma habilidade especial, mas tive uma idéia. Propus que a cada encontro um dos pacientes escolhesse uma música que remetesse a um momento significativo da vida. Eu providenciaria a música e a letra; cantaríamos juntos e ouviríamos um pouco as estórias relacionadas àquela música. Na minha pouca experiência como psicóloga, acreditei que seria um grupo leve e descontraído, como deveria ser. Não era (e nem poderia) ser  um grupo psicoterapêutico. 

O grupo começou bem. O primeiro encontro foi muito alegre e a trilha sonora foi "Saudades da minha terra", uma canção sertaneja que traz a nostalgia de quem já morou no campo e agora morava na cidade. Era justamente a história da paciente, já com mais de cinquenta anos, que nos contou estórias da sua vida com o pai e irmãos. Rimos juntos, pacientes com história de vida semelhante trocaram idéias. Terminado o encontro, perguntei quem gostaria de escolher a música para o próximo. Outra paciente se manifestou e o cantor escolhido foi, nada mais, nada menos, que ele:


Aí, meus caros, a coisa ferrou. Robertão mexe com o imaginário brasileiro. Não é à toa que, em  todos os anos, pessoas de diversas idades choram ao vê-lo cantar. Letras simples, melodia fácil, muitas músicas que marcaram a vida de MUITA gente. Você pode até não gostar, mas o poder do homem é grande. A música escolhida foi "Como é grande o meu amor por você" e a atividade, até então, alegre, virou um espaço de catarse, a maioria das mulheres chorou, alguns pacientes saíram da sala, tudo muito, muito triste. Não havia (por um cuidado nosso) pacientes psicóticos no grupo, mas todos eles estavam bastante vulneráveis, obviamente. Menosprezei o efeito que a memória afetiva despertada pela música tivesse naquelas pessoas. O grupo não acabou, mas aquela experiência me marcou profundamente e contribuiu para que eu fosse mais cuidadosa no meu exercício profissional.

Não houve como não lembrar desses tempos ao assistir o belíssimo documentário de Eduardo Coutinho: "As canções".


Coutinho que tem, entre seus trabalhos, o delicioso "Edifício Master", fez um anúncio no Rio de Janeiro pedindo que voluntários comparecessem para cantar músicas que haviam, de alguma forma, marcado suas vidas. Houve bastante procura, entre pessoas muito jovens e idosas. Os melhores depoimentos, entremeados pelas canções, estão no documentário. Há estórias alegres e otimistas, mas algumas pessoas tiveram de interromper sua narrativa entre lágrimas. Muitos delas são tristes. Impressiona o número de canções do onipresente Roberto Carlos. E impressiona mais ainda o número de mulheres abandonadas. E, ao contrário do que possa parecer, essas mulheres não parecem melodramáticas ou até, digamos, chatas, com o drama vivido. É possível, mesmo nos casos aparentemente bizarros, identificar-se com elas e seus amores perdidos, às vezes há mais de quarenta anos.

Penso que o documentarista tem algo do psicanalista. A intervenção deve ser mínima e pontual. O cenário para os depoimentos não tinha como ser mais neutro: uma poltrona preta com uma cortina (preta) atrás. Nenhum instrumento acompanhava as canções. A vontade que tive foi de saber mais sobre cada uma daquelas pessoas, quis fazer perguntas. Certamente, se fosse a psicanalista ali, as faria. E, talvez, se Coutinho tivesse gravado este documentário há doze anos, eu pensaria mais de uma vez antes de fazer a fatídica (e por que não, bela?) "oficina de música". Nunca, jamais menospreze o poder de uma canção.

* este post foi publicado, originalmente, em Fevereiro de 2012. Publico novamente em homenagem a Eduardo Coutinho, um dos maiores cineastas que o Brasil já teve.