sexta-feira, 27 de setembro de 2013

Prenez soin de vous...

"A arte existe porque a vida não basta" (Ferreira Gullar)

Sophie namorava Gregoire. Em um belo dia, ele terminou o relacionamento com ela. Por e-mail. Entre outras coisas, o e-mail trazia uma recomendação: "Prenez soin de vous" (Cuide-se). O recado não poderia ser mais claro (era um fora!). No entanto, a escritora e artista Sophie Calle enviou o e-mail para 107 mulheres (de nacionalidades e profissões distintas) para tentarem dar uma nova significação à carta. Os 107 novos sentidos para um simples e-mail resultaram em uma exposição de arte. Ou seja, uma mania muito presente entre mulheres (o que será que ele quis dizer com isso?) virou produção e gerou dinheiro. Lembrei de Sophie nestes últimos dias, em meio às discussões sobre o DSM-V e diante uma receita médica antiga que andou circulando pelas redes sociais.

A  famosa receita médica (com letra legível!)

Consta que Sophie, ao procurar por ajuda psiquiátrica ao término de seu namoro, teria sido atendida no hospital público de Paris. A médica (fofa), Catherine Solano, recusou-se a medicá-la com antidepressivos: "Você está apenas triste" - redigiu ela. E terminou a receita com uma afirmação que se concretizou, enfim: "Você encontrará recursos para reagir". Sophie Calle encontrou. Não adoeceu. Fez arte.

A nova versão do Manual de diagnóstico de Doenças Psiquiátricas (o DSM-V) traz várias modificações polêmicas, sendo uma das principais, a psiquiatrização do luto. O trabalho de luto (após a morte de alguém, término de relacionamento, perda de um projeto de vida, enfim) que é, afinal, algo tão fundamental à vida, está classificado como doença mental no novo DSM. Pelo novo manual, Sophie, que sofria pelo fim de uma relação de amor, estaria doente e deveria ser medicada. Assim como todos nós que um dia já sofremos com um fim.

É claro que existem dores psíquicas muito intensas que precisam, sim, de ajuda medicamentosa. No entanto, fiquei pensando se Sophie Calle teria montado, afinal, sua exposição de arte se tivesse sido medicada. Talvez sim, não dá para saber.Não estava doente, contudo,e encontrou recursos (que não um psicofármaco) para reagir. Que bom se todos pudéssemos "fazer arte" a partir de um e-mail. No final das contas, Sophie seguiu o conselho de Gregoire. Ela se cuidou, ao seu modo.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Mal traçadas linhas...

Eram os anos 90 e éramos em doze meninas. Em meu primeiro ano de faculdade eu morei em um "pensionato para moças" em Ribeirão Preto. Pouco conforto, uma cidade estranha, 17 anos, mas muita alegria e cumplicidade. Todas nós éramos "estrangeiras" naquela terra quente, abafada e linda. A Califórnia brasileira só carecia de uma boa praia e dos velhos amigos de infância, de quem sentíamos muita falta. Uma internet capenga só na Universidade e ainda não tínhamos o hábito dos e-mails.A hora mais esperada do dia? A visita do carteiro! Nada substitui hoje o prazer de receber aquelas cartas gordinhas, com envelopes preenchidos com letras conhecidas de gente querida (e, às vezes, MUITO querida).

Mulheres costumam escrever mais. Nem sempre enviam as cartas (hoje, e-mails), mas escrevem mais que os homens, no geral. A minha geração, que cresceu nos anos 80, é a geração dos papéis de carta e dos cursos (ainda) de datilografia. Até hoje digito sem olhar no teclado, "herança" do projeto de ser uma exímia datilógrafa. Nos cinzentos anos 80, já com medo do desemprego, eu pensava que se não fosse jornalista, pelo menos uma datilógrafa rápida eu teria condições de ser!

Papéis de carta! S2
Comecei a escrever cartas cedo. Para a turma da Mônica, para o Balão Mágico, para o Sonho Maluco do Gugu, para a promoção do Caldo Maggi da Galinha Azul. Hoje, nem jornalista, nem datilógrafa, sinto falta do prazer de escrever longas cartas, ainda que no teclado do computador. É raro conhecermos as letras das pessoas, no máximo, sua assinatura. Lembro de cartas longas e numeradas que escrevíamos durante a semana toda para então postar na sexta feira. Era mais fácil ser dramática com cartas. Letras tremidas, perfume nas páginas (com talco!), beijo de batom e até... lágrimas! Houve uma carta que deixei cair (de propósito) algumas lágrimas fazendo borrar toda a caligrafia. A mexicana que até hoje habita em minha pessoa usava e abusava do drama epistolar. Palavras como "arrebatamento" e "rompante" eram as minhas preferidas, além das metáforas básicas, é claro. Quantas vezes quase corri atrás do carteiro por conta de uma carta (mal) escrita e impulsiva? Minha "Thalia" interior, definitivamente, tinha de ficar em um calabouço.

Curso técnico  por correspondência: quer coisa mais velha?
Hoje não sinto mais aquela emoção ao ver o cara de uniforme amarelo dos Correios (sim, o carteiro era, ainda que indiretamente, um objeto de desejo!). No máximo, fico feliz ao receber uma encomenda ou aqueles livros que tanto quis comprar. Devo estar  ficando velha. O mundo pré-internet era mesmo um outro mundo. Um mundo que acabou. Saudades dele.


terça-feira, 17 de setembro de 2013

Flores Raras

"Flores Raras" não precisa caber num catálogo de "filmes homossexuais" porque cabe no dos grandes filmes de amor e porque já pertence a uma época em que a orientação sexual talvez seja, enfim, inessencial." (Contardo Calligaris)


Compartilho da mesma opinião de Calligaris sobre o último filme de Bruno Barreto. "Flores Raras" faz com que você se apaixone pelas protagonistas e ao mesmo tempo se irrite com elas, sem deixar de torcer pelo romance das duas. Não faria diferença alguma se a história ocorresse entre um homem e uma mulher, ou entre dois homens. Em certo sentido, faz lembrar do belo filme de Ang Lee, "O segredo de Brokeback Montain"(2006), uma das mais bonitas histórias de amor já contadas no cinema. Eram dois homens, mas isso, de fato, era o que menos importava. "Flores Raras"  foi inspirado no livro "Flores raras e banalíssimas" de Carmem L. Oliveira, que conta a história da passagem da poeta americana Elizabeth Bishop pelo Brasil, entre os anos 50 e 60 e, consequentemente, de seu envolvimento com a arquiteta Lota de Macedo Soares.


O filme vale a pena, em especial, pelas atrizes. A narrativa não traz nada de inovador, mas é incrível a química entre Gloria Pires e a atriz australiana Miranda Otto. O contraste entre a morena, intempestiva e comunicativa Lota com a delicada, alva e retraída Bishop é enfatizado em muitos momentos. Vale a ressalva de que, embora sejam personagens reais, houve toda uma criação das atrizes e do diretor. Ao que parece (pelo menos nas fotos), Bishop não era nada bela como Miranda Otto, nem tão pouco parecia  delicada e frágil.

Algo que me chamou a atenção no filme, e que é raro encontrar nas produções daqui, especialmente nas novelas, é que os personagens são mostrados trabalhando. A personagem de Lota trabalha muito, movimenta-se o tempo todo. Bishop também. Entre um copo de uísque e outro, a poeta escreve e re-escreve seus poemas. Nos filmes americanos isso é muito comum, podem reparar. Todos de alguma forma são mostrados ao fogão, ou cuidando do jardim, ou no trabalho, enquanto vivem seus dramas pessoais. 

Na vida real, durante o tempo que estiveram juntas, Lota e Bishop produziram suas obras- primas. Bishop ganhou o prêmio Pulitzer por "North and South" e Lota projetou o Aterro do Flamengo. Como toda relação muito apaixonada, esta não acabou bem (o final do filme, bem dramático, de fato, ocorreu). No entanto, como também enfatizou Calligaris, foi uma relação de amor que permitiu que o melhor de cada uma viesse à tona. Fez com que eu me lembrasse de outra relação passional bastante conhecida, a da artista plástica Marina Abramovic com Ulay. Ulay inspirou (muito, e de forma positiva) a obra de Marina.

Enfim, "Flores Raras" é um filme que instiga. A pensar sobre o amor. A querer ler Bishop. E a aplaudir Glória Pires. De pé.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Repetição

"It's repetition,
I'm coming back to you.
Repetition,
The only thing I can do. "


 ("Repetition", Information Society)


Bill Murray no já clássico "O feitiço do tempo" (1993)

Há um filme emblemático (bastante citado por psicanalistas e também já citado por aqui) que se chama "O feitiço do tempo" (Groundhog Day). Nele, Phill Connors (Bill Murray), um jornalista renomado, um "astro", é obrigado a cobrir "o dia da marmota" (o título do filme, em inglês) em uma cidade pequena do interior, cheia de "caipiras". Contava a lenda que se a marmota (um roedor) saísse de sua toca e olhasse para a própria sombra, o inverno continuaria por muito tempo. Phill acaba fazendo o seu trabalho com imenso pouco caso, esperando ansiosamente para sair dali. Eis que uma nevasca impede sua saída da cidade naquele dia e ele é obrigado a dormir lá. Quando acorda, a surpresa. Ele não está somente preso na cidade que abomina, mas no "pior dia de sua vida". O filme narra as tentativas de Phill para quebrar o feitiço e seus vários posicionamentos diante da repetição. Pergunta Phill: "Mas eu não poderia estar repetindo um dos melhores dias da minha vida? Por que, justamente, o pior deles?"

A (tragi)comédia de Phill Connors, afinal, faz pensar em nossa própria vida.Quantas vezes, especialmente em nossas relações afetivas, nos vemos incorrendo em "reprises"? O filme é antigo, eu não gostei, e cá estou eu sendo o protagonista do velho enredo novamente. Novamente sendo abandonado (a), novamente investindo em relações à distância, novamente "impelido" a destratar quem me ama. Os objetos de amor (ou desamor) são completamente distintos, mas os enredos, ah, os enredos, são bastante similares.

No filme, Phill Connors tenta de todas as formas sair de seu dia ruim: promete casamento, insulta pessoas, tenta até se matar. Depois, tudo continua como se nada tivesse acontecido, nenhuma consequência e o dia ruim começa outra vez. A saída da repetição se dá quando ele se angustia e implica-se nela. "O que, afinal tenho a ver com isso tudo?". Phill consegue quebrar o feitiço, quando, finalmente, consegue se reinventar. Ele quebra sua sina fazendo uso da criatividade e da arte e, por meio desta expressão criativa, pode, enfim, viver o amor.

Em nossa vida, a procura por uma psicanálise se dá justamente quando aquela estorinha que fez, de alguma forma, sentido durante toda a vida, não cola mais. Dá-se, entre outras coisas, quando a repetição torna-se incômoda. Não é destino, não é maldição, não é sina. O que seria, afinal, este algo que me impele a repetir "o mesmo dia"? E, muitas vezes, o mesmo "dia ruim"?


Tal como um livro ou um filme que é assistido várias vezes, também a vida pode ganhar novos sentidos a cada "reprise". Parece a mesma coisa, mas é outra, porque eu estou diferente.Parece a mesma coisa, mas é outra, porque não estou vendo pela primeira vez. Se tudo se parece com uma sucessão de reprises de mal gosto, há algo a se questionar. A vida, afinal, não precisa ser como aquela música grudenta dos anos 80 (e que inicia o post): repetição não é a única coisa que podemos fazer.