sábado, 25 de fevereiro de 2012

As canções

"Vou colecionar mais um soneto,
 Outro retrato em branco e preto
 A maltratar meu coração (...)"

Meu primeiro emprego como psicóloga foi em um CAPS, uma época bastante feliz e marcante. A coordenadora do serviço, em um dos meus primeiros dias, comunicou-me que eu poderia escolher uma atividade para coordenar junto aos usuários, além dos grupos que eu já participava e dos meus atendimentos individuais. Não seria um grupo psicoterapêutico, mas um espaço que eu teria junto com os pacientes para ouví-los um pouco, conhecê-los mais. Eu poderia escolher uma atividade como mediadora deste contato, sem, é claro, desempenhar a função da terapeuta ocupacional. Chegava a época do Natal e já havia oficinas de guirlandas e cartões. Não identificava em mim nenhuma habilidade especial, mas tive uma idéia. Propus que a cada encontro um dos pacientes escolhesse uma música que remetesse a um momento significativo da vida. Eu providenciaria a música e a letra; cantaríamos juntos e ouviríamos um pouco as estórias relacionadas àquela música. Na minha pouca experiência como psicóloga, acreditei que seria um grupo leve e descontraído, como deveria ser. Não era (e nem poderia) ser  um grupo psicoterapêutico. 

O grupo começou bem. O primeiro encontro foi muito alegre e a trilha sonora foi "Saudades da minha terra", uma canção sertaneja que traz a nostalgia de quem já morou no campo e agora morava na cidade. Era justamente a história da paciente, já com mais de cinquenta anos, que nos contou estórias da sua vida com o pai e irmãos. Rimos juntos, pacientes com história de vida semelhante trocaram idéias. Terminado o encontro, perguntei quem gostaria de escolher a música para o próximo. Outra paciente se manifestou e o cantor escolhido foi, nada mais, nada menos, que ele:


Aí, meus caros, a coisa ferrou. Robertão mexe com o imaginário brasileiro. Não é à toa que, em  todos os anos, pessoas de diversas idades choram ao vê-lo cantar. Letras simples, melodia fácil, muitas músicas que marcaram a vida de MUITA gente. Você pode até não gostar, mas o poder do homem é grande. A música escolhida foi "Como é grande o meu amor por você" e a atividade, até então, alegre, virou um espaço de catarse, a maioria das mulheres chorou, alguns pacientes saíram da sala, tudo muito, muito triste. Não havia (por um cuidado nosso) pacientes psicóticos no grupo, mas todos eles estavam bastante vulneráveis, obviamente. Menosprezei o efeito que a memória afetiva despertada pela música tivesse naquelas pessoas. O grupo não acabou, mas aquela experiência me marcou profundamente e contribuiu para que eu fosse mais cuidadosa no meu exercício profissional.

Não houve como não lembrar desses tempos ao assistir o belíssimo documentário de Eduardo Coutinho: "As canções".


Coutinho que tem, entre seus trabalhos, o delicioso "Edifício Master", fez um anúncio no Rio de Janeiro pedindo que voluntários comparecessem para cantar músicas que haviam, de alguma forma, marcado suas vidas. Houve bastante procura, entre pessoas muito jovens e idosas. Os melhores depoimentos, entremeados pelas canções, estão no documentário. Há estórias alegres e otimistas, mas algumas pessoas tiveram de interromper sua narrativa entre lágrimas. Muitos delas são tristes. Impressiona o número de canções do onipresente Roberto Carlos. E impressiona mais ainda o número de mulheres abandonadas. E, ao contrário do que possa parecer, essas mulheres não parecem melodramáticas ou até, digamos, chatas, com o drama vivido. É possível, mesmo nos casos aparentemente bizarros, identificar-se com elas e seus amores perdidos, às vezes há mais de quarenta anos.

Penso que o documentarista tem algo do psicanalista. A intervenção deve ser mínima e pontual. O cenário para os depoimentos não tinha como ser mais neutro: uma poltrona preta com uma cortina (preta) atrás. Nenhum instrumento acompanhava as canções. A vontade que tive foi de saber mais sobre cada uma daquelas pessoas, quis fazer perguntas. Certamente, se fosse a psicanalista ali, as faria. E, talvez, se Coutinho tivesse gravado este documentário há doze anos, eu pensaria mais de uma vez antes de fazer a fatídica (e por que não, bela?) "oficina de música". Nunca, jamais menospreze o poder de uma canção.

* este post foi publicado, originalmente, em Fevereiro de 2012. Publico novamente em homenagem a Eduardo Coutinho, um dos maiores cineastas que o Brasil já teve.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

"Um dia", o filme.

“Dr. Jivago”, um dos maiores romances de todos os tempos, ganhou uma versão épica no cinema pela direção de David Lean. Já ouvi de muita gente que a versão cinematográfica consegue ser ainda melhor que o livro, que é uma obra prima. Hoje, não há como pensar no doce médico Yuri Jivago, sem lembrar de Omar Sharif. No entanto, não são raros os casos de leitores decepcionados com adaptações de livros para a tela grande, ou mesmo para a televisão. É muito comum a frase-chavão: “Ah, mas o livro é bem melhor”.

Omar "Dr. Jivago" Sharif
Pensando nisso, foi com uma expectativa pequena que fui assistir a “Um dia”, o filme adaptado do romance de David Nicholls, um dos meus livros preferidos do ano passado e que comentei aqui.

“Um dia” não é um “Dr. Jivago”. Nem o livro, nem o filme. “Dr. Jivago” é grandioso, conta as agruras da vida particular de um homem em meio a um momento histórico que mudaria toda a história do século XX. Jivago é o herói por excelência: o médico sensível, poeta, cheio de esperanças e ideais, mesmo quando tudo parece perdido. Já “Um dia” conta uma história banal, como tantas outras. Poderia ser a minha, a sua, a de qualquer pessoa. Dois amigos, uma garota e um rapaz, compartilham a vida durante vinte anos. Não há um sistema cruel ou um vilão ardiloso que os separa e que os impede de viver uma relação amorosa, mas os desencontros próprios da vida. Eles não conseguem viver juntos por medo, por narcisismo, por insegurança, por nada. Li em algum lugar e concordei. Enquanto na noite de formatura de ambos, um deles (a garota) queria mudar o mundo, o rapaz queria apenas usufruir do que o mundo poderia lhe oferecer.



A história pode ser banal, mas a forma de contar não é. É isso que faz o romance ser bom. Você se apega aos neuróticos protagonistas Emma e Dexter. Poderia ser você, poderia ser um (a) amigo (a) seu. Um livro tijolão de quase 500 páginas e lá está você apegado (a). Aí fica difícil a adaptação para o cinema, MESMO.

Uma boa notícia para quem leu o livro: você reconhece os personagens na tela. Estão lá Emma e Dexter. Anne Hathaway, fofa por excelência e o belo Jim Sturgess têm uma química danada. Você sente, no entanto, que tudo vai muito rápido. No livro, é uma relação construída com nuances ao longo de trocentas páginas e que, no filme, acabam resumidas em duas horas. Alguns detalhes importantes perdem-se e, com isso, os personagens também perdem em riqueza e complexidade. Para quem não leu o livro, o filme acaba sendo outro, entre tantos, daquela categoria tão criticada aqui no blog: um filme de chorar. Isso talvez explique o público abaixo do esperado e as críticas ruins.

Em resumo: lendo ou não o livro, vale a ida ao cinema. Não espere uma obra prima, não é um Dr. Jivago. Dentro do possível, e dentro do que cabe a um enredo aparentemente banal,  Lone Scherfig soube contar a história. “O apanhador do campo de centeio” é outro livro com uma história banal contada de uma forma fantástica. O autor J. D. Salinger nunca autorizou uma adaptação para o cinema, no que fez, acho, muito bem. Conseguem imaginar este livro emblemático transformado em um filme, traduzido em imagens? Eu não consigo. O cinema faz milagres, mas acho dificílimo a transposição de um texto psicologicamente denso para a telona. Mas isso, é claro, é só uma opinião.

Obs: Contardo Calligaris escreveu um dos seus textos mais sensíveis ao discorrer sobre o livro "Um dia". Se não conferiu, vale a leitura.